quinta-feira, 29 de novembro de 2007
Pequenas injustiças
Pequenas injustiças
Há noites em que me mortifico. Assim que coloco a cabeça no travesseiro, ponho-me a pensar: será que ofendi um amigo, alguém com quem travei relações passageiras ou mesmo um desconhecido? Porque, ao agir de maneira inconseqüente, ou mesmo sem querer, podemos estar magoando pessoas que atravessam os nossos dias. Lembro-me do escritor Marcel Proust, sempre tão preocupado em ser gentil com os outros. Toda vez que saía de um restaurante com a impressão de não ter sido delicado o suficiente, ou mesmo generoso, com quem o havia servido tão bem, retornava ao local para se desculpar ou, no mínimo, deixar uma gorjeta mais substancial. Não sei se é preciso chegar a tanto. Já não parecemos capazes de ver o outro como uma extensão de nós mesmos, mas preocupa-me, e muito, a dúvida sobre se eu poderia ter agido de maneira mais fraterna com este ou aquele ser cuja presença ainda preenche os momentos que precedem meu sono.
Tão difícil saber até onde se pode ir em palavras e atos. O que me parece prosaico, banal, sem importância alguma talvez adquira uma dimensão estratosférica para quem tem um tipo diferente de sensibilidade. O que não me toca pode deixar uma ferida aberta em meu amigo. Como fazer para não lhe causar dor? Tão fechados estamos em nossa concha doméstica que raramente nos damos conta de que podemos machucar pessoas que nos são caras. E é nos gestos miúdos, nas palavras proferidas aleatoriamente, que isso mais acontece. Quando as coisas parecem claras, quando os holofotes da verdade e da mentira, ou mesmo das falsas certezas absolutas, incidem sobre nós e os outros, fica fácil distinguir as reais intenções de nosso agir. Difícil mesmo é caminhar por essas pequenas veredas onde tudo é insinuado, onde tudo acaba se perdendo dentro do banal, do que não merece um registro maior.
Tenho muito medo de causar dor em pessoas, bichos, plantas. Há em mim uma percepção de que tudo pulsa e que é necessário caminhar com cuidado para não desorganizar todo um sistema que vive ao nosso redor. Se somos dotados de um sentir mais sutil, se não queremos que nos causem sofrimento, por que esse cuidado rarefeito quando se trata de quem convive com a gente? Na ligeireza de nossas ações cotidianas, é inevitável que acabemos externando uma sentença áspera, um gesto mais violento, uma ausência que dói em quem depositou em nós esperança de cumplicidade. Fazer exames periódicos de consciência pode ajudar a diminuir a quantidade de injustiças que cometemos tão comumente. Se temos dificuldade em entender o que se passa dentro de nós, imagine se vamos nos preocupar em descobrir as razões que determinam o sofrimento de nossos pares vida afora. É sempre invisível esse corte que abrimos na pele do vizinho, do colega de trabalho, em nosso irmão, pai ou mãe. Tudo porque é difícil entender o território estrangeiro de alguém que não somos nós. Fico repetindo para eu mesmo: "tenha cuidado, tenha um pouco mais de cuidado".
Nem sempre há uma intenção maldosa em nosso agir, exceto quando a alma adoece e já não sabe mais distinguir a justiça da arrogância. Não raro nos deparamos com homens e mulheres que propositalmente procuram mostrar uma frágil marca de superioridade espezinhando qualquer um que simplesmente passe pelo seu caminho. Mas com a grande maioria, o que acontece é simplesmente distração. Entre um afazer e outro, trocamos frases que muitas vezes acabam com a serenidade de quem está ao nosso lado. Eu sempre pensei na delicadeza como uma espécie de virtude capital, a mais necessária para viver em sociedade, para estabelecer um sentido de grandeza em nossas relações.
O primeiro passo para tentar alcançar um estado satisfatório de humanidade talvez seja ir limando os inúmeros preconceitos que permeiam nossa maneira de agir e interagir. Por que pensar em termos de raça, de profissão, de preferência sexual, de conta bancária? No começo e no fim somos rigorosamente iguais. No meio, cada um tenta ser feliz, somente isso. O problema está nas armas que usamos quando nos sentimos ameaçados, sem perceber que todos se sentem em perigo e todos partem para a guerra desconhecendo o porquê. Confesso que tenho passado horas e mais horas buscando descobrir como poderia ser mais educado, evitando conflitos desnecessários, não levantando inutilmente a voz toda vez que me sinto desafiado. Já é alguma coisa refletir sobre isso, mesmo que raramente transformemos as intenções em prática efetiva. Relembro seguidamente os quatro votos budistas. É uma espécie de oração que orienta minha existência. Creio que tudo está contido nessas pequenas proposições com mais de 25 séculos. São elas: "Lutar contra as más tendências; dedicar-se até o fim aos estudos; aperfeiçoar-se na medida do possível; por mais numerosas que sejam as criaturas do universo, trabalhar para salvá-las". Não se pode exigir mais de nós. Não se deve exigir menos. Neste delicado equilíbrio situa-se o espaço que define os deuses e os homens. É preciso escolher uma das moradas.
segunda-feira, 24 de setembro de 2007
Sensibilidade e testosterona
O empório da sensibilidade está praticamente liberado para uso masculino. Podemos chorar à vontade, mostrar nossas carências, usar os cremes mais modernos e até, supra-sumo da permissão, fazer cirurgias plásticas. As fronteiras que nos separam do feminino se tornam cada dia mais tênues. Estamos todos participando do festival das igualdades. Quem tem mais de 40 anos (estimativa generosa) sabe do que se está falando. Há algumas décadas, e vamos ficar nessa medida de tempo, existiam divisões claríssimas entre os sexos, que deveriam ser respeitadas tanto por eles quanto por elas. E ai do infeliz que se atravesse a ultrapassá-las. Sua virilidade seria questionada imediatamente. Hoje passeamos mais livremente dentro desse campo quase infinito de possibilidades que define, antes de mais nada, a nossa condição de seres humanos.Mas será que é mesmo um bom negócio ser homem e sensível? Há controvérsias. Todas as minhas amigas suspiram por um ser de alma feminina, seja lá o que isso signifique. Dizem estar cansadas de namorar brucutus, criaturas toscas e simplórias que se interessam unicamente por falar de futebol, anatomia feminina (estou usando um eufemismo) e negócios. Querem um companheiro com quem possam dividir suas angústias existenciais, seus sentimentos mais profundos, enfim, um ser que as entenda em sua condição especialíssima - assim se definem. Procura aqui, procura ali, no máximo acabam encontrando um bom amigo para partilhar horas e mais horas de conversa sobre a triste solidão em que se encontram. Se o amigo for gay, perfeito. Excetuando-se o fato de não poderem ir para a cama com ele (embora haja as que, como os evangélicos, acreditam em conversão), formam o par ideal para as longas noites regadas a champanhe e tédio. Mas só isso, claro, não basta. Os instintos mais básicos vêm à tona e elas precisam acenar em adeus para o que antes parecia ser a redenção de todo o sofrimento. De onde se conclui o óbvio: as mulheres passam a vida suplicando por um homem sensível, mas acabam se unindo mesmo a um representante do sexo masculino que pinga testosterona. Quanto mais, melhor. Deve ser algum chamamento atávico vindo lá dos confins da nossa história: para a perpetuação da espécie há que se respeitar, com clareza absoluta, quase chocante, o espectro de características viris que compõem a geografia física e psíquica de um homem. Não acho que seja uma escolha consciente. Deve tocar uma espécie de sininho, muito sutil, nos ouvidos de uma mulher, toda vez que ela se aproxima de alguém assim. Existem forças poderosas que não podem ser traduzidas pela linguagem. É a natureza lutando sabiamente para não se extinguir.Digo isso baseado em fatos concretos, reais. Eu poderia até fornecer nome e endereço, mas o pudor e a noção do risco me impedem de cometer tal indiscrição. Já não posso contar somente nos dedos das mãos o número de amigas e conhecidas que foram cortejadas por homens que nutriam sentimentos sinceros, ouviam longa e silenciosamente suas queixas, que sabiam escolher os melhores vinhos e as presenteavam com flores que pareciam ter sido cultivadas numa estufa do paraíso. E, acredite, daqueles que, no limite do anacronismo, ainda pensavam em dar um livro como demonstração de afeto. Pois bem. As coisas pareciam encantadoras até aparecer aquele indivíduo que provava, sem sombra de dúvida, que descendemos diretamente dos macacos. As pernas começaram a tremer (uso palavras delas), uma espécie de cegueira tomou conta de sua visão e... adeus busca de sensibilidade e delicadeza. Ainda não ouvi nenhuma reclamando a presença de um tacape, mas temo por isso. Não vai nessas mal traçadas linhas uma crítica ao comportamento feminino. Nada mais é do que uma observação, seguida de uma constatação. Toda escolha está eivada de ganhos e perdas. Mesmo que a gente se entregue a essas tais opções erradas, acabamos fazendo determinados arranjos internos que nos possibilitam tocar a vida para frente, sem grandes lamentações. Nisso consiste a sabedoria humana. Ou o auto-engano. Enfim, o que se vê por aí é um longo e inflado discurso, calcado na dificuldade dos relacionamentos, uns sendo de Marte, outras de Vênus e coisa e tal. Mas quando aparece a oportunidade de romper com isso, poucas se atrevem a escolher aquele que se apresenta com a tal da alma feminina. No balanço dos queixumes e desencontros, restam dois universos um pouco desfocados, mirando seus desejos no alvo errado. De um lado, as que rogam por mais entendimento, mais aproximação. Do outro, os que se apresentam com tais atributos, mas que parecem não receber a aprovação biológica das supostamente interessadas. Exceções, claro que as há. As revistas femininas estão cheias de matérias contando lindas histórias de homens que lavam a louça com imenso prazer e sabem trocar uma fralda como ninguém. Cozinham com técnica e talento de chef e são ótimos de cama. Colocam todo o Kama Sutra em prática, com direito a apêndice. É uma espécie de loteria que poucas felizardas ganham. Enquanto a discussão parece não ter fim, eles e elas se olham com estranheza, como se a idéia de companheirismo não fosse um item indispensável na cesta básica dos relacionamentos. Diferenças, sim, desde que elas não nos desfoquem do objetivo primeiro da vida. O amor não precisa ser uma Torre de Babel ou algo que se pareça com uma montanha a ser escalada. É possível ser feliz nas planícies, olhando para quem está ao nosso lado como uma página que podemos e queremos decifrar.
terça-feira, 4 de setembro de 2007
Para compreender o corpo !
Num desses diálogos agradáveis que alimentam o que há de melhor dentro de nós, um amigo me diz: "não busco encontrar razões metafísicas, transcendentes, para entender o que acontece comigo. Não creio num destino traçado previamente e muito menos no acaso. Penso que somos o resultado objetivo de ações que tecem a nossa existência." Reflito sobre isso e concluo que esta é também a minha maneira de ver a vida. Organizo meu pensamento em termos sempre provisórios, lembrando, como sugeriu Mario Quintana, de datar sempre minhas opiniões.Acredito nesta fórmula, simples e clara: quem é do bem atrai coisas boas, quem é do mal sempre acaba sendo solapado por coisas ruins. Rumi, um poeta do Século 13, disse: "abra suas mãos se quiser ser sustentado." Pessoas generosas costumam receber presentes inesperados. Não que o universo seja guiado por leis morais, como gostaríamos. Provavelmente reine um grande silêncio cósmico, e nossos apelos ressoem no vazio. Não vejo nada de trágico nessa possibilidade. É bom sentir-se dono de si mesmo. Não com a arrogância de um ditador que pensa poder se apropriar do mundo. Mas com a clara certeza de que atitudes leves e saudáveis nos aproximam de pessoas portadoras dessas mesmas qualidades. Pude testemunhar, ao longo dos anos, diversas situações em que amigos de coração puro e destituídos de apego a bens materiais sofreram reveses financeiros de proporções catastróficas. Num primeiro momento, tendi a acreditar que tudo estava perdido e que o "vencedor", nos termos com que a nossa sociedade nos categoriza, era sempre o mais esperto, aquele que soube aproveitar-se da fraqueza alheia. Passados alguns anos, mantendo uma postura de aceitação e busca de novos caminhos, longe da ruminação rancorosa do que se passou, essas pessoas reconstruíram sua vida de forma admirável. Não se pode dizer o mesmo dos responsáveis por seu infortúnio provisório. Sem exceção, foram todos devolvidos a uma existência onde o principal objetivo de suas ações continuou sendo o de se locupletarem à custa da ingenuidade alheia. É uma roda sem fim. Enquanto os primeiros encontram quietude na tolerância e buscam perspectivas novas, os últimos ficam, invariavelmente, presos à necessidade de se sentirem os ganhadores. Sempre. Claro, é tudo uma questão de perspectiva, mas não creio que a religião ou mesmo a ciência possam desmentir as afirmações acima. Deve existir uma espécie de teia invisível que nos aproxima de nossos iguais, que faz com que ações desinteressadas gerem novas fontes de sustento para quem se permite consumir o seu tempo sem a violência de querer possuir o que não é seu. É uma lei física, nada mais do que isso. E que deve encontrar uma ressonância profunda em nosso cérebro, principalmente no inconsciente. É uma pena que ainda não se possa medir os benefícios que este tipo de atitude promove. O que podemos fazer, sim, é nos entregar a uma observação mais apurada do que acontece no âmbito de nossas relações, não só as de amizade, mas também as amorosas. Quando começamos a ter o entendimento de que a melhor colheita é aquela que se reparte, o nosso sustento estará garantido, como nos ensina o poeta. Reter é criar mensagens subliminares de que não há necessidade de repor nada, pois a despensa está cheia. Nesse tipo de lei, de caráter talvez espiritual, eu acredito. Não tenho pudor em me entregar a um raciocínio que, aos mais sofisticados de pensamento, pode parecer simplista, quase ordinário. Pouco ou nada me interessa buscar na complexidade uma razão para o que acontece conosco. Tenho convicção de que os poetas são mais qualificados para entender o que nos ocorre do que os filósofos, embora não rejeite os últimos como fonte de sabedoria. Tantas vezes somos tocados por situações que exigem de nós apenas um olhar mais despojado, um entendimento objetivo, que não se desdobra em sentenças de compreensão inalcansável. Somos intricados, mas somos também extremamente previsíveis. O roteiro de um indivíduo geralmente contém o roteiro de toda a humanidade. Eu repito, para mim mesmo, todos os dias: espalhe, espalhe, espalhe. Não existe outra obra a ser feita senão aquela que nos deixa livres para abandoná-la assim que depomos as ferramentas. Praticar o bem, para si e para os outros, não pode ser apenas um mandamento religioso, mas também uma afirmação científica. Embora ainda não saibamos traduzir as mudanças que isso desencadeia na nossa consciência, o certo é que estaremos sendo guiados rumo a algo que parece justificar a nossa presença aqui. Talvez seja o antídoto necessário para amenizar a nossa condição de predadores. Enfim, como sentenciou Zênon, sempre somos vítimas de uma armadilha qualquer. Sejamos nós submetidos a alguma espécie de julgamento ou não, a lógica nos empurra ao encontro de atitudes menos nocivas para o mundo físico e emocional. No mínimo, é menos trabalhoso passar a vida longe das estreitas prisões onde sonhamos nos apropriar de tudo e de todos. Não é essa matéria que deve viajar em nosso sangue.
segunda-feira, 27 de agosto de 2007
Pequeno, bem pequeno
Pequeno, bem pequeno
Costumamos ficar assombrados toda vez que lemos ou assistimos na televisão a notícia de um roubo vultoso, do desvio de dinheiro público ou de uma grande tragédia. Sem dúvida, números superlativos exercem grande influência sobre nossa maneira de pensar o mundo. Ficamos chocados, estarrecidos, ensaiando revoltas que geralmente não ultrapassam o discurso que proferimos entre as refeições ou em conversas ligeiras com amigos. Por outro lado, sempre me espantou o fato de aceitarmos tácita e passivamente a transgressão miúda, discreta, quase invisível. O vizinho que adora jogar papel de bala pela janela do carro quando está dirigindo, o conhecido que não consegue esperar pelo sinal verde do semáforo, o simpático verdureiro que costuma nos enganar em suas contas.Gestos que aparentemente não merecem nossa atenção podem ser (e geralmente são) o embrião, a porta de entrada para o mundo das grandes corrupções, do afrouxamento da ética. Quem está propenso a ser desonesto no pequeno, certamente não se importará em praticar delitos maiores quando a ocasião assim o permitir. A tolerância ou o descaso diante de situações mais modestas são o passaporte para despertar o nosso delinqüente interno, aquele que quer tirar vantagem sempre que possível. Isso vale para todos. É mais do que sabido que muitas pessoas cheias de boas intenções e belas teorias sucumbem diante da primeira chance de mostrar o seu lado menos nobre. Sinto-me tentado a crer que passamos a vida domando o que há de ruim dentro de nós. Portanto, nada mais compreensível do que o exercício ocasional de algumas transgressões. A questão é unicamente de oportunidade. Tudo nos leva a crer que a honestidade é uma espécie de suspensão de nosso estado natural de ser. Ficamos indignados toda vez que somos informados que um político legislou em causa própria ou se adonou de uma quantia que não lhe pertencia. Eu já não me espanto. Rasgamos nossa biografia com a maior facilidade.
Impossível avaliar o nosso grau de honestidade enquanto não pudermos testar a resistência que temos diante das ofertas que se apresentam. Seria preciso dar a cada um de nós os poderes de um César para pôr à prova a nossa têmpera, já nos ensinaram. Somos todos ótimos em discursar contra aqueles que merecem a condenação geral. Juntamo-nos ao coro dos descontentes, esquecendo que muito provavelmente nossas ações não seriam diversas se lá estivéssemos. Se você mora numa favela, se é privado do essencial, se vive corroído pela vontade de possuir bens materiais que lhe são inacessíveis, é bastante previsível que vá se manifestar ferozmente contra os que têm acesso a tudo isso. Só que acaba esquecendo de analisar o próprio comportamento. Nossa tendência é a de sermos predadores, grandes ou pequenos, de estarmos sempre prontos a dar o salto e abocanhar o que cremos nos pertencer por direito. Procuramos atenuar a culpa jogando a responsabilidade pelas desgraças da humanidade sobre aqueles que são exemplos acabados de corrupção.
Muitas vezes nos sentimos autorizados a ir além do que nossos valores nos permitem. Se ninguém estiver olhando, ótimo. E se for bem longe de casa, aí será perfeito. É mais ou menos a mesma história do marido que não acredita estar enganando a mulher se tiver uma aventura em outro estado ou em outro país, com alguém desconhecido. Fidelidade geográfica? Honestidade a conta-gotas? Desculpem, não acredito nisso. Quem é íntegro, quem discursa e pratica o que discursa (devem existir ainda alguns), por certo o faz no mais prosaico e privado dos atos. Esses não costumam furar a fila e devolvem o troco a mais que lhe é dado. Não é preciso que ninguém lhe aponte o erro, a transgressão. Mas, quantos de nós age assim? Passamos os dias desencantados com os políticos, os empresários, os grandes líderes. Não somos muito diferentes deles, apenas estamos em outro lugar e em outra situação.
É sempre bom observar primeiro o que acontece conosco. Treinar os propalados bons princípios no dia-a-dia e ser menos tolerante com os próprios deslizes, por menores que pareçam. Vivemos distraídos de nós porque é mais fácil creditar aos outros a obscuridade de determinados comportamentos. Avaliar a nossa desonestidade em centímetros não dá autoridade para nos escandalizarmos com quem a pratica em larga escala. Não há grande diferença entre esta e aquela. O que varia é tão somente a punição que a sociedade costuma imputar a uns e outros. Não somos anjos nem demônios, mas só conseguiremos descobrir isso depois de fazer um test drive.
segunda-feira, 9 de julho de 2007
A grama do vizinho
A grama do vizinho...
...é sempre mais verde do que a nossa. Passamos a vida fazendo comparações. Falta algo em mim que está sobrando no outro. Temos uma tendência natural de imaginar que fulano é mais feliz, mais rico, mais tranqüilo que nós. Como não somos o travesseiro de ninguém, seria bom se começássemos a perceber como essas especulações são enganosas. Cada um aprende a lidar de forma específica com os talentos ou carências que têm e vai se adaptando aos fatos que provocam felicidade ou desgraça, na medida em que eles surgem.Quantas angústias seriam evitadas diante da compreensão, simples e objetiva, de que não importa o quão cercados de benesses estamos, sejam elas físicas, materiais ou afetivas, se não temos os mecanismos internos para usufruí-las. Exemplo: conheço pessoas belíssimas que se acham muito sem graça. Analisando-se friamente, é quase impossível imaginar que não se sintam bafejadas pelos deuses, em termos estéticos. Mas quais trocariam de bom grado seu biotipo, se lhes fosse dada essa oportunidade? Outros tantos, sedutores em sua capacidade intelectual, donos de enorme cultura, sentem-se destituídos cerebralmente. E, já que estamos exemplificando, como esquecer desse grupo que aparentemente se sobressai dos demais, o dos arrogantes, mas que, em última instância, se utilizam dessa postura para ocultar uma enorme insegurança?
É mais fácil estabelecer um julgamento baseado unicamente naquilo que aparece e que se pressupõe seja a nossa imagem real. E, de fato, quase todo mundo a compra como sendo. Mas é só vasculhar rapidamente a nossa vida para perceber que aquilo que muitas vezes motiva a inveja alheia pode ser fonte de sofrimento e apreensão. Todo julgamento é parcial e atinge somente a primeira camada, a das aparências. Um substrato mínimo de autoconhecimento é necessário para que possamos gastar nossos dias com mais tranqüilidade. Uma compleição física razoável ajuda. Um trabalho que não nos obrigue a passar longas horas fazendo tarefas repetitivas, também. Amor e sexo, bom humor e saúde, idem. Mas são apenas pontos de partida para realidades que não obedecem a nenhum enquadramento lógico.
A felicidade dos outros parece ser o resultado de uma equação cujos elementos não estão em nós. Talvez essa crença seja a maneira mais fácil de justificar nossa incapacidade de lidar melhor com o que nos pertence. Pode-se dizer, de uma forma simples, que o sentir se sobrepõe ao ser. No pequeno universo de nossas ações ordinárias, retomemos o conceito de que é preciso perder para ter a compreensão da real importância que as coisas têm. A imaginação é febril e gosta de espiar aquilo que não nos pertence. Enquanto isso, somos corroídos pelo tempo, e o que parecia ser fonte de preocupação ou, por outro lado, ser destituído de valor, revela-se precioso na ordem natural da existência.
São dez horas da manhã de uma segunda-feira, quando escrevo este texto. Meus pensamentos se distraem da tela do computador. Pela janela entreaberta vejo as folhas dos manacás caindo sobre a terra. Meus dois cachorros, Nicolau e Lilica, fazem seu passeio matinal pela grama orvalhada. Um pássaro, vermelho e amarelo, pousa num galho seco e fica parado por um tempo que me parece irreal. Por alguns instantes, a minha grama é mais verde que a do vizinho. Sei que sou privilegiado por esse silêncio que me cerca. E porque nada perturba minha observação do mundo e de mim mesmo. Mas são percepções provisórias, bem o sei. Logo estarei de volta a um universo de comparações, de dúvidas e lamentos. O tom do verde vai se alterando na medida em que se altera a nossa capacidade de absorver o sentido real do que nos toca. Preciso lembrar mais vezes dos versos de Fernando Pessoa: "Segue o teu destino/ Rega as tuas plantas/ Ama as tuas rosas./ O resto é a sombra de árvores alheias."
É só o foco que está errado. Às vezes, um pequeno ajuste nas lentes provoca uma mudança radical. Quando encontro uma pessoa muito, mas muito pessimista, inevitavelmente procuro o que pode haver de tão ruim em sua vida. E quase nunca encontro. Mas não há nada mais inútil do que ficar mostrando para ela as tantas coisas boas que estão em seu cotidiano. É como tentar explicar as cores para um cego. Nós nunca vemos o que existe. Tudo é filtrado pelo nosso eu. A salvação é um facho de luz voltado para dentro de si. Pastores, padres, curandeiros ou mesmo terapeutas só podem tentar traduzir. Raramente são capazes de reconfigurar. Quem muda a cor da grama somos nós mesmos.
quinta-feira, 5 de julho de 2007
Quando o excesso de amor mata
Zelo em demasia nunca foi uma boa idéia. Mães que protegem seus filhos 24 horas por dia não os tornam fortes para a vida. Amantes opressivos, que monitoram todos os passos de quem está ao lado, nada mais fazem do que fragilizar aqueles a quem juram devotar um afeto incondicional. Isso vale para o corpo também. Abrigue permanentemente uma criança, sempre em temperatura adequada, sem pegar chuva, frio ou sol, e você verá o resultado. Quando ficar exposta, ela estará tão sem defesas que será vítima de qualquer vírus. Qualquer resfriado a deixará de cama. Falta de amor mata alguém? O contrário, muitas vezes, mata. Não acredito que o ideal seja abandonar por aí as pessoas que queremos bem só para ver como elas reagirão diante da primeira adversidade. Mas não dá para deixar em estufa o tempo todo. Até porque, procedendo dessa maneira, estaremos formando criaturinhas arrogantes, prepotentes e que pensam que tudo deve girar ao redor delas. Aos 12, 20 ou 60 anos. Os danos são quase irreversíveis e a constatação final, bastante provável: "Eu não entendo, passei a vida inteira me preocupando com ele e olha no que deu". Pois sempre dá nisso. Ninguém gosta de se sentir o tempo todo dentro de uma bolha de plástico, mesmo parecendo seguro. As melhores coisas sempre acontecem do lado de fora. Claro que há os ganhos secundários e são justamente eles que fazem com que tantos de nós permaneçamos passivamente sob a tirania dos amores que transbordam. Tente contrariar alguém muito mimado, que nunca precisou lutar por nada. Ninguém garante que você sairá ileso dessa briga. É impressionante a nossa tendência para confundir afeto com opressão. Vamos ficar no exemplo das crianças, porque é nessa idade que se cristalizam os comportamentos que irão reger nossos atos futuros. Eu conheço uma meia dúzia delas e posso afirmar que o convívio se torna praticamente inviável. Todas as suas vontades têm que ser satisfeitas na hora. E a expressão que se observa nas carinhas, a expressão de vitória, é uma das coisas mais deprimentes dessa vida. Mandam e desmandam como se fossem os donos da casa. Como será que elas vão encarar as frustrações futuras? Vale para mães, pais, tios e avós, que nenhum de nós está a salvo do perigo de superproteger. Quem já não ouviu a expressão "matar por amor"? Pois até para isso usamos esse sentimento que deveria ser o que nos distingue de outras tantas espécies. Os homens, principalmente, se valem desse excesso de proteção, de guarda permanente, para justificar os atos mais insanos. Quem é que gostaria de merecer tal distinção? Amor que mata é sempre doença, patologia que deve ser tratada. Quanto mais livre deixarmos quem está ao nosso lado, mais o estaremos fortalecendo. Quanto mais nos sentirmos autorizados para partir, mais teremos vontade de ficar. Ninguém é feliz sugando, sem intervalos, a atenção do outro. Um dia ainda vamos entender isso e descobrir que o que acontece conosco é o mesmo que se dá com as plantas colocadas em estufa: elas ficam lindas, mas dentro daquele restrito espaço em que foram criadas, nas condições ideais. Condições essas quase impossíveis de serem reproduzidas em outros lugares. Quando uma criança esfola o braço, é melhor esperar um pouco antes de enchê-la de abraços e carinhos e beijinhos sem ter fim. A sensação de desproteção fortalece a nossa imunidade. É nesses momentos que encontramos dentro de nós forças que não supúnhamos existir. Todos pecamos nessa questão e é muito difícil não estender os braços diante de alguém que nos manipula amorosamente. Mas não custa ficar atento. É preciso fazer um certo esforço e, às vezes, dizer não. Ou fazer de conta que não se viu e nem ouviu nada quando as chantagens tomam o lugar do bom senso. A têmpera moral, a capacidade de suportar os reveses e a maturidade construída também através das perdas encontram o fiel da balança na nossa perseverança em cair e levantar quantas vezes for necessário. Sozinhos. Sempre sozinhos, que muletas servem para outra coisa. Não é preciso colocar as mãos no pescoço de alguém para estrangulá-lo. Existem formas bem mais sutis, aceitas socialmente. Amando em excesso, por exemplo. Envolvendo o corpo e a alma de quem amamos. Um dia acabamos exigindo tudo isso de volta. No mínimo, em dobro.
terça-feira, 26 de junho de 2007
Seja gentil
Seja gentil
Sinto-me levemente constrangido por tocar num assunto que deveria estar absolutamente incorporado em nossa vivência cotidiana. O que você vai ler até poderá soar como auto-ajuda. Meu objetivo é que se pareça mais com um exercício de civilidade. Vou falar sobre gentileza, um tipo de comportamento que esquecemos quase que totalmente de praticar. Não me refiro à etiqueta, em como saber se portar em determinados momentos. O que me interessa analisar aqui é a diminuição de nossa capacidade de sermos amáveis com o outro.Ao entrar em um elevador, poucos ainda se lembram de cumprimentar os que já estão lá dentro. E de apertar o botão quando alguém entra carregado de pacotes? Mais, de acionar outro botão, o que faz com que a porta permaneça aberta durante a saída dos demais... Talvez eu seja um azarado por não encontrar mais quase ninguém que se predisponha a essas práticas tão simples, tão necessárias para o convívio social e para a manutenção das regras mínimas de boa educação.
À gentileza deve sempre se seguir o agradecimento. Se alguém foi solícito com você, se uma secretária conseguiu adiantar uma consulta médica, um amigo se lembrou do seu aniversário, não esqueça nunca de demostrar que você está grato. Isso para ficar no mais óbvio. Eventualmente, temos a felicidade de cruzar com alguém que segue essa conduta. Eu estava numa festa, por esses dias, quando me deparei com uma bandeja recheada de doces de marzipã. Superlativo como costumo ser, quase me joguei em cima dos mesmos, deixando bem claro que eram os meus preferidos, dentre todos. Pois uma amiga testemunhou este êxtase quase religioso e, dois dias depois, eu estava recebendo em minha casa uma caixa cheia deles. A vida não se torna bem mais agradável quando temos o privilégio de conhecer pessoas com esse tipo de sensibilidade? Não importa o valor do presente, da lembrança, mas sim o gesto, o entendimento de que é através dessas atitudes que conseguimos manter uma densa noção de humanidade.
Tenho visto, todos os dias, criaturas esbarrando nas outras pelas ruas (estamos sempre com pressa) e que nem sequer viram para trás para ver se a pessoa está bem. Pedir desculpas, então, nem pensar. O que importa é como nós nos encontramos. Mas é no trânsito que a coisa chega ao extremo: esperto é aquele que aproveita para seguir em frente quando o sinal está amarelo, o que não se preocupa em ligar o pisca quando vai dobrar, ou, supra-sumo da vitória, não dá passagem a quem está querendo sair de uma transversal e precisa contar com a misericórdia alheia. Situações que se repetem na fila dos bancos, nos supermercados, no bar da esquina. Nem vou entrar no mérito de atribuir aos pais a responsabilidade pela precária educação que dão a seus filhos. Num mundo tão competitivo quanto o nosso, vale esbarrar no outro, atropelar um terceiro, enganar os mais incautos. Tudo para chegar em primeiro lugar, para "ganhar" dois minutos. Aí, quando a gente encontra alguém que ainda se lembra das regras mínimas de convivência, o encantamento se mistura com o espanto, como se tivéssemos feito contato com um extraterrestre.
Com essa nossa ilusão de auto-suficiência, acabamos esquecendo que todos dependem de todos o tempo todo para sobreviver. Tornamo-nos cada vez mais especialistas e, por conseqüência, mais arrogantes e prepotentes. Fazemos melhor, mas uma só atividade. O resto, ora, sempre podemos pagar para que alguém o faça. Até para trocar uma lâmpada. A vida é circular, estamos sempre precisando uns dos outros. É tão simples ser gentil que, ao escrever sobre isso, acabo me sentindo redundante. Tudo deveria ser natural, como tomar um copo de água quando estamos com sede.
Acredite, temos todas as oportunidades do mundo para demonstrar que já largamos o tacape: ceder o lugar para alguém que precisa mais do que nós; não avançar o semáforo antes do tempo, mesmo que não estejamos dirigindo; falar baixo no celular em espaços públicos. A lista é quase infinita. Ah, lembrei agora: existe alguma coisa mais irritante do que esses que colocam o som da música no volume máximo, achando que o seu gosto musical (sempre duvidoso) coincide com o nosso? Tudo bem, não precisaremos nos medicar num pronto-socorro, mas não deixa de ser uma espécie de agressão. O lugar que eu ocupo deve estar em concordância com aquele que está ao meu lado. A palavra do dia, de todos os dias, deveria ser esta: cuidado, pois você está entrando numa área que não lhe pertence.
O título deste texto poderia ser outro. Talvez este: com licença, obrigado, desculpe, por favor. Afinal, o mundo não existe para satisfazer unicamente às nossas necessidades. Estamos todos definitivamente comprometidos com os demais. Os espaços físicos e emocionais parecem estar encurtando consideravelmente. Não seria uma má idéia rever o que chamamos de valores. Para não deixar que o peso de nossa existência destrua a organização que estamos ensaiando desde que saímos das cavernas. Ou, pelo menos, daqueles que saíram.
segunda-feira, 18 de junho de 2007
Nostradamus já dizia !
Pessoal ....é uma coisa curiosa mas vejam o que está escrito nas páginas 146 e 147 do livro- Nostradamus ao alcance de todos -Ed. Brasilisedição de 1976.............. um período de muitas trevas antecederão ao golpe daquele que foi nominado imortal. Um mar de lágrimas antecederá a penultima batalha . Em campo inimigo o laureado imortal será ferido com lanças auri-cerúleas ferindo fundo o seu íntimo. Desta batalha ficará o imortal abatido com a ausência de seu lider inominável. Meia lua passará e o imortal terá sua próxima batalha . Com quatro dardos certeiros tombará o cerúleoanilado nos redutos do imortal coroando de glória mais uma vez aquele que ficará conhecido como o deus imortal ....
segunda-feira, 4 de junho de 2007
Perfeito, mais que perfeito
Desconfio das pessoas que nunca saem da linha. Que são rígidas demais. É provável que dentro delas more um psicopata. Ou um tarado. Na melhor das hipóteses, alguém com sérios desvios de personalidade. Exemplos não faltam. Muitos pedófilos, que seduzem os filhos dos vizinhos e os amigos dos filhos, são pais exemplares, amantíssimos, esposos impecáveis, geralmente devotos praticantes de alguma religião e severíssimos com quem transgride qualquer regra. São duros, inflexíveis consigo mesmos e com os outros. Mas na intimidade tudo muda de figura. É apenas um exemplo. Mas ele pode ser estendido quase ao infinito. E os que nunca se cansam de lavar, passar, esfregar, limpar? Quem tem esse tipo de obsessão procura uma maneira de compensar o que lhe causa sofrimento. Porque é impossível você viver neste estado de cobrança permanente sem encontrar alguma válvula de escape. Que se dá na forma de transgressões, praticando o que é condenado socialmente, o que não pode ser feito sob a luz do sol. Sempre me senti mais à vontade ao lado de pessoas que, independentemente da posição social ou profissional, conseguem ser leves, exercer o senso de humor tão saudável e necessário para desmanchar os nós que o dia-a-dia deixa. Isso é sinônimo de equilíbrio. O contrário também é verdadeiro. Imagine a tensão em que vive aqueles que cobram o máximo de si mesmos. Não é humano. Aliás, não é nem divino. Em algum momento, Ele também deve ter folgado. É interessante observar como se portam os que vivem com uma régua na mão, medindo não o máximo, mas o mínimo, o pequeno, aquilo que costuma passar despercebido para os razoavelmente normais. Que ninguém precisa exagerar. A extrema intolerância para com os demais é sintoma inequívoco de algum problema. Pois é doentio não tolerar, eventualmente, a visão de um guardanapo amarfanhado quando vamos a um restaurante. Ou querer que as roupas estejam guardadas em rigorosa ordem cromática. Mais: imaginar que se possa sempre evitar que alguma sujeira esteja próxima de nós. Importar-se menos significa saber usufruir mais. Aceitar a falta, o exagero, o descuido. Não é preciso ficar o tempo todo com o chicote na mão, policiando a si e aos demais. Pois somos assim: uma mistura de atos que nem sempre alcançam as bordas da perfeição. Até porque é preciso que o tempo deixe suas impressões sobre seres e coisas para transformá-los em algo mais belo. Uma xícara levemente lascada, a maciez de uma camisa usada por muitos anos, a familiaridade de um corpo amado, que se pode reconhecer somente pela intimidade. Tudo isso contribui para tornar a vida mais intensa. Assepsia total, excesso de normatização? Obrigado, prefiro me divertir em outra praia. É fácil identificar os que não se permitem nada além da obediência cega a algum contrato que fizeram consigo mesmos. Você não encontrará um fio de cabelo fora do lugar, a meia combinará com a blusa e eles nunca atrasarão uma tarefa. E só perpetuam isso porque não conseguem desentranhar de si nenhuma outra possibilidade. Sem contar que, pelo menos num primeiro momento, costumam conquistar a admiração de quase todos aqueles com os quais estabelecem relações. Eu acho de uma tristeza mortal. Sem contar que fico morrendo de vontade de dar um chute nas suas canelas para descobrir que reação teriam. Porque é impossível alguém seguir por um caminho tão estreito sem querer conhecer o que se encontra nos arredores. O mais preocupante, me parece, é que essa espécie de ser, quando resolve se manifestar em seu avesso, nunca o faz por pouca coisa. As cadeias abrigam muitos assassinos que costumavam levar a vida da maneira mais prosaica possível. E é difícil reconhecê-los. Até porque costumam ser sedutores, envolventes, o que faz com que um batalhão se apresente para a adoração. Com as exigências do nosso tempo, com a necessidade de estarmos cada vez mais atualizados, pois a competição é ferrenha, não é de estranhar o aumento desmesurado dos que costumam nos enganar, com sua pele de cordeiro. Quando a gente vê, tudo já passou, terminou. Quem nós amamos, a casa que nos protegia, os amigos que eram o nosso melhor patrimônio emocional. Não vale a pena querer tudo, querer tanto o tempo todo. Sem falhas. Eu já tive um bocado dessa patologia. Me tratei a tempo e já não me preocupo em deixar a roupa corretamente arrumada assim que a desvisto no final do dia. A louça pode ser lavada amanhã, e o vermelho combina com o roxo, quem disse que não? Já experimentei não organizar a minha mesa de trabalho, errar a conjugação dos verbos, andar com a barra da calça suja de terra. Fiquei uns vinte quilos mais leve. E não foi numa balança que detectei isso. Aprendi com Horácio: "Não é sábio o sábio, nem justo o justo, se seu amor à virtude é exagerado." Relaxe e seja feliz.
segunda-feira, 2 de abril de 2007
A solidão
Que venham os amores. Muitos. E amigos. Todos os que pudermos acolher. E mais, mais ainda. Mas que se saiba, em meio a todos estes encontros, preservar o que há de mais essencial para o ser humano: a solidão. Pois não há liberdade maior do que a de encontrar contentamento e equilíbrio dentro de si mesmo. Espalhar-se nas pessoas com as quais convivemos passou a ser uma regra quase obrigatória e que todos se predispõem a seguir. Poucos, raros privilegiados, são capazes de estabelecer esse diálogo silencioso com a própria alma. Toda a filosofia de Nietzsche parece nos mostrar somente isso: o verdadeiro homem se estabelece tranqüilo dentro do isolamento e da ausência. Tenho visto amores doentes, casamentos gastos, encharcados de tédio, mas que parecem resistir unicamente pela incapacidade dos parceiros de voltar ao núcleo essencial de toda a existência. Em muitas situações, permitimos diversos tipo de violência psíquica, quando não física, porque o medo se sobrepõe a qualquer manifestação de dignidade. E não percebo este comportamento somente em seres intelectualmente menos dotados. Isso não tem nada a ver com inteligência. Essa mendicância amorosa pode afetar qualquer um. Para estar com alguém, cedemos no que há de mais essencial, abdicando de tudo que sempre postulamos como o mais importante para se viver com coerência e dignidade. Difícil saber ficar só. Não somente pelos inúmeros estímulos que encontramos a todo momento, mas principalmente porque isso exige de cada um o severo e difícil exame do que está do lado de dentro. E não são tantos os que se dispõem a perscrutar esse labirinto onde se encontram as emoções, onde a razão se verga diante de necessidades que não podem sequer ser catalogadas. Permanecer só, no entanto, revela-se como o mais alto estado de consciência a que se pode aspirar. Se outros argumentos não houvessem, bastaria apenas este: não dependemos de ninguém para banhar-nos em serenidade. Essa serenidade que norteou a vida dos grandes pensadores da humanidade, desde os gregos, quando se começou a sistematizar o pensamento filosófico, até o mais contemporâneo dentre nós. Não se está falando aqui dessa solidão ressentida, amarga e que tantas vezes põe o nosso corpo e as nossas emoções doentes. Seres que vagam pelos dias arrastando sua tristeza como um animal perdido pelas ruas não podem ser enquadrados na categoria dos sábios. A solidão exige uma longuíssima disciplina que não exclui, em absoluto, o contato com os outros. Ela não tem nada a ver com o espaço físico ou com o número de amigos que vamos angariando com o passar do tempo. Ao contrário, é sempre uma atitude interior, a percepção de um sentimento de completude que não depende de nada e nem de ninguém. Saber estar só é a mais alta das meditações, o ganho maior de uma vida que normalmente se fecha entre perdas e esquecimentos. Há tantos prazeres que podemos usufruir e que costumam passar ao largo de nossa existência sem necessariamente precisar repartir. Quando assim for, haverá também beleza, por certo. Mas por que não encontrar contentamento também quando estamos sozinhos? Quando descobrimos a suprema felicidade de rir e alegrar-se e sofrer e estar em paz sem depender de mais ninguém? Não faço aqui a apologia do individualismo, que desse todos nós já estamos fartos. A conquista da solidão é o oposto disso tudo. Não podemos alcançá-la senão depois de atravessar esse parque de diversões onde imaginamos que se encontra a satisfação de nossos desejos. E que ninguém pense que somente irá encontrá-la no cimo de uma montanha. O primordial é que saibamos estar entre a multidão de passantes para poder testar a qualidade desse nosso estado de ser. Não precisamos suprimir nada para que ela se instaure dentro de nós. O que nos é exigido é que que se possa extrair dela o conforto para os dias de euforia e de pesar. Solidão e liberdade são palavras sinônimas. Seu sentido último se irmana quando queremos descobrir uma justificativa para esse sopro chamado vida. Por mais que tentemos fugir de nós, em algum momento será inevitável fazer essa confrontação. E quanto antes isso acontecer, mais fortes nos surpreenderemos. Estar só não significa encontrar-se só. É, antes, o merecido prêmio para quem soube buscar o alimento nos domínios do seu próprio reino. Tudo o mais são terras estrangeiras.
sexta-feira, 30 de março de 2007
Toda mãe é míope ?
Sim. Ou, pelo menos, umas 95%. É impressionante como elas são incapazes de perceber quando seus adorados pimpolhos ultrapassam todos os limites. Filho é sempre filho e não há oftalmologista que consiga ajustar as lentes fora de foco. O pequeno bárbaro pode estar derrubando a casa, destruindo móveis e utensílios, barbarizando o poodle da vizinha... e nada. Ainda assim ele continuará sendo o anjinho da casa, a dócil criaturinha que só existe dentro da sua cabeça. Eu, que não consigo me curar do complexo de Herodes, tenho ímpetos homicidas quando vejo esses diabinhos em miniatura tripudiando, rindo e se divertindo a custa da, digamos assim, ingenuidade materna. Não me venham com teorias psicanalíticas. Freud, Lacan, Jung e congêneres. Eu sinto a palma da minha mão ficar quente toda vez que vejo uma criança brincando de reizinho da casa. E mamãe, com sua nova teoria de que antes de filho ele é amigo, vai perdoando, perdoando, perdoando. E a palmatória, mesmo que imaginária, repousa num passado que deveria ser presente. Não, nada de ressuscitar métodos nazistas para fortalecer o caráter infantil. Bem, talvez só de vez em quando. Mas, por favor, pra que tanta teoria? Pra que tanto discurso, se no final são os filhos mesmo que acabam decidindo tudo? É sempre muito saudável manter o diálogo entre adultos e crianças. Porém, há um determinado momento em que é preciso dizer "não, agora chega". Assim, bem simples, de fácil entendimento, nada dúbio. Porque, senão, é o que se tem visto por aí: esses bichinhos ainda não adestrados começam a invadir o já pequeno universo reservado aos mais crescidos. Suspeito que muitos pais se retraem quase com medo diante de situações em que as crianças se mostram mal-educadas, simplesmente porque não querem causar nenhum trauma na personalidade delas, ora em formação. Só que quem acaba traumatizado não são exatamente eles. Tenho visto por aí genitores exauridos, sem a coragem de dizer "pois é, às vezes eu penso que teria sido melhor nem ter filhos". Mas que pensam, pensam, nem é preciso ser vidente para descobrir. Claro, há mil razões para explicar essa arrogância infantil que tomou conta de quase todos. Nos tornamos praticamente desconhecidos para eles, terceirizando os cuidados, delegando a professores mal remunerados e pouco preparados a difícil tarefa de "modelar" uma massa informe e resistente. Mais fácil destinar um terço do nosso salário a essas instituições que ficar em casa sovando uma massa que parece crescer rápido demais. Quem os há de culpar? Eu faria a mesmíssima coisa. Como sou razoavelmente bem-educado, acabo me obrigando a dar um sorrisinho de viés diante de cada traquinagem ou ato de prepotência que vejo em crianças já aos três, quatro anos de idade. Sem contar que muitas vezes os orgulhosos pais confundem tudo isso com precocidade, "olha só, que lindo, ele já quer fazer tudo sozinho, detesta quando damos algum palpite, quer até bater na gente". Encantador, não é? Talvez para quem tem vocação masoquista. Estar presente só nos intervalos não nos habilita a exercer um tipo de autoridade tão necessário em nossos dias, quando o sentido do que se pode ou não fazer praticamente desapareceu. São as mães que geralmente acabam endossando esse tipo de comportamento. Derretem-se diante de qualquer bobagem que os principezinhos fazem, confundindo falta de modos com criatividade. E depois dê-lhe sessões semanais com psicólogos já nos primeiros anos de vida, quando se dão conta do erro que cometeram. Muitas nem se dão. Quando não os entopem de antidepressivos. Não sei, mas alguma coisa deve estar errada, pois tudo parece fugir do controle e o sentido da palavra "limite" se esvai no ar. Na minha infância, por questões educacionais e mesmo financeiras, fui privado de muitas coisas. E, sinceramente, acho que cresci razoavelmente normal, aprendendo a lidar com as frustrações e os desejos não realizados. Mais tarde corri atrás por conta própria e parece estar tudo bem. Comecei a trabalhar com nove anos e me lembro da alegria que tive ao receber meu primeiro pagamento. Sobrevivi e não fico me debruçando sobre as dificuldades pelas quais passei. Hoje, marmanjos de 17 anos passam as tardes jogando videogame e parecem sempre cansados, muito cansados. Ó vida! Ó tédio! Por isso é de se perguntar: criança feliz é aquela que não recebe um "não" e que empilha quinquilharias dentro desses novos bazares em que se transformaram os seus quartos? O assunto é velho, batido e deve ter rendido algumas dúzias de livros. Mas parece que não adiantou muito. Tudo continua como dantes, só que pior. As crianças estão expandindo cada vez mais seu raio de ação. Logo, ninguém será capaz de contê-las mesmo. Será que as mãezinhas continuarão sorrindo? E aprovando? Comecem suas apostas.
segunda-feira, 19 de março de 2007
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007
Público , privado e outras coisinhas
Público, privado e outras coisinhas
Estou em uma das salas de cinema do Arteplex, em Porto Alegre. Concentradíssimo no filme, mal percebo o que acontece ao meu lado. Súbito, sinto um movimento, a menos de cinqüenta centímetros do meu rosto, de inquietos dedos femininos. Olho e mal consigo acreditar. A jovem que está sentada na cadeira contígua à minha havia descalçado os sapatos e, sem cerimônia alguma, colocou os pés displicentemente sobre o espaldar da fileira à frente. Pronto, penso, agora ela vai vestir o penhoar e as pantufas, porque tem certeza de que está na sua casa. Irado, dou-lhe o tempo de dez segundos para se recompor e agir como um ser humano razoavelmente bem-educado. Ela me olha, quase sem entender e, com uma calma de fazer inveja a um monge, começa a executar o que lhe pedi. E tudo prossegue como se nada tivesse acontecido. Exceto pela taquicardia que tomou conta de mim durante esse tempo. E haja concentração depois disso.
Não é possível, penso, que continuemos a nos comportar de tal forma em espaços públicos. Afinal, não estamos encerrados em nosso quarto, sozinhos, prontos para usufruir do máximo de liberdade que nos é possível. Onde está o outro, nesta história toda? Em que momento deixamos de percebê-lo? Situações como a descrita acima tornaram-se corriqueiras, banais, a tal ponto de quase não nos chocarmos quando pessoas as praticam sem a menor cerimônia. Tudo parece ser permitido quando o individualismo extremado rege as ações.
Meia hora depois de terminada a projeção do filme, sentado num café, percebo que as pessoas estão falando cada vez mais alto. É uma algaravia infernal. Penso até que algum fato extraordinário possa ter motivado tamanha empolgação. Engano. Sou informado de que fulano se submeteu a uma cirurgia de varizes, sicrano viajou para Dubai e, "nossa, você já leu o último livro do Augusto Cury? Está maravilhoso." Tudo isso em menos de cinco minutos e à minha revelia. Emoção boa é emoção gritada, escancarada, jogada na cara do ouvinte como uma bofetada. Afetiva, mas mesmo assim uma bofetada. A vida se tornou uma colcha de retalhos, todos da mesma cor, tem razão quem disse isso. Não foi só a moda que padronizou o ser humano. Estamos agindo como macaquinhos treinados para agradar a um público que nos presenteia com balas no final do espetáculo. O importante é nos fazermos notar. Nem que para isso tenhamos que tentar transformar a nossa vida doméstica, que geralmente tem o mais banal dos enredos, numa história mirabolante e sedutora.
Emoção em seu limite máximo. Sentir aos poucos, devagarinho, sem pressa, quem ainda se predispõe a isso? É preciso ocupar o primeiro lugar da fila, pois logo atrás tem gente interessada em fazer o mesmo. Competimos compulsivamente, num exercício insano de auto-superação. Saudável, quando for uma proposta de ultrapassar os limites, mas quase beirando à demência toda vez que não nos damos conta da armadilha na qual estamos entrando. Toda e qualquer experiência pessoal pode virar de um momento para o outro enredo de filme ou de livro. Banalizamos de tal forma a arte (e a existência) que já não temos mais parâmetros para separar a confissão do trabalho criativo, propriamente dito. Tudo pode ser vendido, e bem, desde que uma boa divulgação nos faça crer que vale a pena consumir isso ou aquilo.
Ainda sonho com o dia em que alguém, ao me contar um segredo, enrubesça levemente. Parece-me muito poética a idéia de encontrar uma criatura com algum pudor, alguma reserva ao relatar fatos de sua vida pessoal. Mas, por enquanto, o que se vê é um desfile sem fim de vaidades, uma exposição desmesurada, onde o exibicionismo parece ser o único deus a ser reverenciado. A conseqüência natural disso é que estamos sempre em busca de uma vitrine. Exemplo: há poucas semanas, quatro diferentes revistas, dessas especializadas em devassar a intimidade das celebridades momentâneas, estamparam em suas capas a mesma foto, do mesmo casamento, sob o mesmo ângulo. Daqui a alguns meses, se tanto, elas usarão o mesmo espaço para noticiar a separação do famoso casal. Aproveitar o momento, a oportunidade, virou um mote que todos seguem bovinamente.
Discrição. Poucos ainda se lembram do significado dessa palavra. Caso contrário, ninguém ousaria colocar os pés descalços em cima da cadeira à sua frente. E falaríamos mais baixo e teríamos vergonha. Essa vergonha saudável que nos impede de sair por aí agarrando o primeiro que se dispuser a nos emprestar seu ouvido. Paradoxo: precisamos ser vistos, mas não vemos mais ninguém. As portas todas se abriram. Caminhamos, apopléticos, em busca de um lugar ao sol. Mesmo que este sol ofusque e deforme todas as fisionomias. Principalmente a nossa.
terça-feira, 13 de fevereiro de 2007
Bronzeados, magros e quase felizes
A cidade está linda. Decotes profundíssimos desfilam pelas ruas. Pernas longilíneas competem entre si. E músculos, muitos músculos rasgando camisetas sempre um número menor do que recomendam os fazedores de moda. Corpos que se mostram para uma estação de sol do Saara. A pele, bronzeada, variando apenas em gradações, é o sinal inequívoco de que não existe mercadoria mais valiosa que o corpo. Perfeito. Ninguém, em sã consciência, não sente os hormônios entrarem em ebulição por esses dias. Estamos todos mais disponíveis, mais atentos às possibilidades que se apresentam. O único problema parece ser a exclusão que sofrem todos aqueles que não acreditam piamente que a felicidade se resume em intensificar a melanina, reduzir as gorduras a quase zero e ensaiar um olhar bem blasè diante da primeira tentativa de sedução. Vivemos dias em que a liberdade, obtida arduamente, se tornou o maior prêmio, uma conquista que nos enche de orgulho. Só que liberdade, assim como a entendo, é sempre fruto de uma escolha individual, que não obedece a nenhuma padronização. E o que se tem visto por aí é exatamente o contrário: todos se sentem livres na medida em que se parecem com seus pares. Quanto mais uniformes for possível usar, melhor. E isso se evidencia muito no verão, pois é preciso seguir todas as tendências, desfilar padrões que nem sempre se adaptam à totalidade e à variedade dos biotipos humanos. Chegamos muito próximos do ridículo, diversas vezes, só por não ter a coragem de impor aos outros nosso jeito de ser, um comportamento que não compactue com o que está na moda. Afinal, nem todo mundo gosta de praia e um tom mais alvo também pode sugerir sensualidade. E, convenhamos, dá pra ser feliz tendo mais do que quarenta e poucos quilos. Penso nisso tendo a clara consciência de que sou um hedonista, que aprecia sobremodo um corpo bonito, bem definido. O que me causa desconforto é ver tanta gente por aí sofrendo, achando que a vida não vale mais a pena só porque está fora dos padrões considerados normais. E quando eu digo sofrimento, não estou exagerando. Tenho uma amiga que se recusa a ir a qualquer festa só porque engordou cinco quilos. E não há argumento que a convença de que ela continua linda e, no mínimo, bem diferente dessas anoréxicas que desfilam por aí seus ossos. Sejamos magros e bronzeados, mas sem esquecer que nem todo mundo está disposto a passar por verdadeiras sessões de tortura para chegar ao ideal sonhado. Sem contar que muitas vezes é nossa saúde quem mais sofre com todo esse desequilíbrio, pois não há nada pior do que se privar dos prazeres mais elementares, sempre com uma fita métrica na mão. Quando entramos no campo da cirurgia plástica, nem se fala. Se, ao se olhar no espelho, algo estiver incomodando muito, não hesite: vá correndo a um cirurgião. Ele poderá devolver sua auto-estima. Mas, cuidado, nem sempre você ficará muito diferente da boneca Barbie. Três ou quatro cabeças masculinas (as femininas o farão por inveja) se virarão quando passarem por você. Nada mais. Donde se conclui que a sensação de bem-estar que algumas vezes sentimos não está necessariamente atrelada à proporção dos seios ou dos glúteos. O perigo de pender só para um lado é que acabamos nos viciando justamente naquilo que mais nos faz mal. E sempre com um sorriso aparvalhado no rosto, como que a dizer que encontramos a fórmula da alegria perpétua. Existem maneiras bem mais interessantes de conquistar um homem ou uma mulher. Imagine o espanto que se pode causar ao citar um livro ou um filme. Você surpreenderá, na certa. Só não vale os que estão na lista dos mais vendidos ou assistidos. Mas isso demanda disciplina interna, perseverança e, às vezes, a constatação de que nem sempre é fácil ou necessário ser o centro das atenções. Claro, que mulher não gosta de constatar que, à sua simples passagem, a construção da casa do seu vizinho sofrerá um considerável atraso, diante da paralisação de quase todos os funcionários, que estarão com os olhos colados nela? Sem esquecer as palavras de baixo calão que muitas fingem se horrorizar ao ouvir. Delícias às quais não é preciso se furtar, desde que se saiba que tudo isso é periférico, um mero entretenimento para dar mais sabor à existência. Por mim, viveríamos num eterno janeiro e fevereiro. Como é bom fechar atrás de nós a porta de casa e sair por aí, flanando, namorando com os olhos o despudor que se anuncia já nas primeiras horas da manhã. Porém, cuidado, muito cuidado. Quando aceitamos tudo como verdade inquestionável é porque dentro de nós já não há mais nenhum senso crítico, nenhuma vertente analítica. Magros, gordos, branquelos, morenos, altos ou baixos. Cada um a seu modo procura ser reconhecido, num tempo em que nos dizem que é preciso refazer tudo para ter alguma chance afetiva ou profissional. Não ceder a esse primeiro chamamento já é um sinal de que nem tudo está perdido. Sem falar que é muito interessante variar o cardápio. Afinal, photoshop só vale para página de revista ou jornal. A realidade é sempre mais imperfeita. E muito mais interessante.
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007
Beijo
Se eu tivesse um filho, gostaria de ensinar a ele que uma das coisas mais bonitas da vida é beijar. Digo isso a propósito de algumas situações inusitadas que vivemos no dia-a-dia. Em primeiro lugar, chama a atenção o constrangimento que geralmente sentimos quando vemos duas pessoas se beijando. Se a primeira reação é ficar olhando, porque todos nós temos um pouco de voyeur, logo em seguida costumamos repudiar esse ato quando feito em público. Parece um pouco indecente, um pouco devasso. Como se a expressão do afeto viesse carregada de alguma conotação de pecado. Mais uma vez, o ranço moralista que carregamos dentro de nós, fruto de homilias e penitências tão caras às religiões, vem à tona. É difícil nos encantarmos, sem que nenhum desconforto se manifeste em nós, nos momentos em que a carícia substitui a indiferença, ou até mesmo a violência, fora do âmbito estritamente privado. Na infância, quando o mundo se apresenta como um campo infinito de possibilidades a serem exploradas, os pais costumam cobrir os filhos de afagos, tocando não só o seu rosto, mas o corpo inteiro. É tudo macio, fofo, absolutamente tentador. Esses agrados costumam ser permitidos também às pessoas mais próximas das crianças, enquanto os progenitores salivam diante dos encantos de seus rebentos. Quem dera fosse assim por toda a vida. Mas logo, logo, a gente começa a colocar cercas. Até aqui pode. Mas só até aqui. Nem pensar em ultrapassar os limites impostos pelo decoro. Não demora muito tempo e começamos a acreditar que há algo errado com quem não se contenta em usar a linguagem como a melhor expressão do que está sentindo. Aí acaba ficando tudo meio triste, sem graça. Bem rápido começamos a nos retrair e lá vamos nós para os consultórios dos terapeutas em busca desse elo perdido. Mas os adolescentes estão tão liberais, podemos pensar. Sim, é claro, só que o tipo de liberdade que conquistaram está estritamente relacionado à libido. Beijar dez pessoas na boca numa única noite é como não beijar nenhuma. O contraponto é que eles morrem de vergonha quando pais e mães se aproximam com intenções amorosas. É como se eles vivessem uma espécie de holocausto da pele. Entre os seus pares tudo é permitido. Mas somente entre eles. Eu sonho com um tempo em que homens e mulheres possam existir sem tantas amarras, conscientes de que a felicidade pode ser algo orgânico, relacionada aos sentidos, à percepção do prazer que o corpo, quando a mente está sadia, costuma nos dar. Não acredito estar clamando por Sodomas e Gomorras modernas. Pelo contrário. A anomalia está no celibato, no falso pudor, na contenção dessas explosões hormonais que nos acompanham vida afora. Beijar e acariciar é sempre bom, tenhamos nós vinte ou oitenta anos. Só que são inúmeras as conspirações sociais para que isso não aconteça. Há ainda muita repressão, muita fome para ser saciada. Quando não podemos extravasar o que sentimos, acabamos jogando todas essas pulsões no trabalho, como se ele pudesse resolver as nossas carências, a necessidade de sentir o calor de um outro ser. Talvez seja por isso que costumamos nos sentir atraídos toda vez que testemunhamos um acidente ou uma briga na rua. Melhor se deleitar com a infelicidade alheia do que ficar espiando o que os outros fazem e que nós gostaríamos tanto de fazer. Mas não temos coragem. Imagine um jornal que tivesse na capa a foto de um casal se beijando numa praça. Ou de vários casais. Será que venderia tanto quanto aquele que se rende a tragédias e assassinatos? Desconfio que a edição ficaria quase toda encalhada. Não ignoro a violência que assola o nosso cotidiano. Vivemos sob a égide do medo, da insegurança. De certa forma, nos sentimos esmagados por essa questão. Mas é bom pensar que isso não pode inibir um saudável despudor, não economizando nunca os contatos e os beijos. Em casa, no trabalho, nas ruas. Assim como quem caminha distraído e de repente se dá conta de que a morte é a impossibilidade definitiva de tocar o outro, fazendo assim com que desapareça em nós toda reserva, toda contenção. Se eu pudesse legislar sobre as datas comemorativas que constam em nosso calendário excluiria uma série delas, que me parecem meio absurdas. Mas instituiria um feriado mundial para homenagear o beijo. Com prêmios para todos aqueles que chegassem ao fim do dia aptos para uma nova maratona.
segunda-feira, 29 de janeiro de 2007
Tudo é sexo(ou sexo é tudo)
O que é instinto e o que é repressão? Até que ponto conseguimos vivenciar nossa sexualidade sem as amarras impostas pela sociedade? Provavelmente, a liberdade termina onde começa o olhar alheio de reprovação. Podemos dizer que em raros períodos da história os homens foram livres para experimentar eroticamente o seu corpo sem que a religião ou algum sistema de poder tentasse conduzi-los conforme seus interesses. Este é um assunto que sempre me fascinou, principalmente ao observar como é difícil encontrar pessoas que conseguem se expressar fisicamente com a mesma desenvoltura de uma criança que se maravilha com seus brinquedos. Outra questão que se impõe: se você for desenvolvido espiritualmente, por assim dizer, se a arte e a cultura estiverem no centro de seus interesses, o sexo será algo periférico na sua existência? Parece que esse antagonismo é mais folclore do que verdade. Terminei de ler O Animal Agonizante, de Philip Roth, um pequeno e precioso libelo contra a hipocrisia nas relações humanas. David Kepesh, o personagem central, é um velho e renomado professor, crítico de arte, um intelectual irretocável, em suma. Mas é também uma espécie de sátiro contumaz, que não consegue dar um curso sem levar para a cama uma de suas alunas. O que, num primeiro momento, poderia descambar para a velha dicotomia carne/espírito, revela-se uma profunda meditação sobre a passagem do tempo, a angústia que se precipita junto com o desejo e, acima de tudo, sobre a presença sempre sorrateira da morte. E o que fazemos para esquecer ou tentar escapar dessa realidade que assola a todos nós? Segundo David, sexo. O único momento em que conseguimos rir da morte, driblando sua força com uma força maior ainda. Se assim não fosse, por que será que tem tanta gente interessada em reprimi-lo? Não se enganem os mais liberais achando que vivemos numa época essencialmente tolerante e permissiva. A prova disso é que a observação prática desmente a maioria das pesquisas (quase todas risíveis) quando é esse o tema. O resultado, para os mais desavisados, é que habitamos um país onde se transa quase que dia sim, dia não. Melhor: dia sim, e outro também. Onde não existe desinteresse sexual entre parceiros que estão juntos há muitos anos, e a palavra infidelidade é uma evocação remota que se oculta entre as páginas de um dicionário qualquer. Que bom se assim fosse. Por certo haveria muito mais gente feliz no mundo e muito menos interessados em alcançar o poder. É irritante perceber como nos acostumamos a mentir quando somos questionados sobre nossa vida sexual. Entre amigos, nem se fala. Só existem máquinas sexuais. Falhar ninguém falha, e não há um único dia em que ir para a cama não é o prazer mais esperado. Amontoamos mentiras sobre mentiras na secreta esperança de que nos considerem o melhor entre os melhores. E que nos invejem, claro. Porque não parece existir um troféu mais desejado do que esse: o garanhão do ano. Esperem mais um pouco e as mulheres também reivindicarão seu prêmio. Sim, tudo ou quase tudo é sexo. Uma amiga costuma dizer que usamos vários disfarces, costuramos os diálogos com outros assuntos mas, no fundo, o interesse é sempre o mesmo. Alguém se espanta? Se fosse diferente, talvez não tivéssemos sobrevivido como espécie. O que há para lamentar é apenas a nossa covardia em assumir isso. É precisar esconder, muitas vezes de forma ridícula, que nem sempre estamos no topo. Que somos, sim, vítimas de necessidades que nos avassalam e que não encontram nenhuma forma de sublimação. Uns usam o casamento como disfarce e percebem a roubada em que entraram. Outros, mais audazes, experimentam tudo o que podem na esperança de encontrar a saciedade. Mas não encontram nunca, porque na maioria dos casos nem a idade é um salvo-conduto para que não nos interessemos mais por essas coisas, essas coisas de sexo. Existe o amor. Mas existe também esse animal agonizante que nos espreita o tempo todo e que só vai morrer com a nossa morte. A completude permanecerá sempre como um desejo infantil para mascarar a nossa solidão. O velho professor, já com setenta anos, dizia: "As pessoas pensam que quando se apaixonam elas se completam? A união platônica das almas? Pois eu não concordo. Eu acho que você está completo antes de se apaixonar. E o efeito do amor é fracionar você. Antes você está inteiro, depois você racha ao meio." Enquanto isso, bem próximo de cada um de nós, todos farão de conta que essa história toda não tem nada a ver com o que se passa em suas casas. Pervertidos ou infelizes são sempre os outros. Como eu gostaria de acreditar nesse conto de fadas que mais parece um conto de horror. Alguém aí pode provar o contrário?
sexta-feira, 26 de janeiro de 2007
Orai, irmãos
Estou plantando petúnias na chácara enquanto ouço o canto dos pássaros. São nove horas de uma bela manhã de sábado. Sinto um ruído de passos que se aproximam. Duas simpáticas senhoras e uma criança se apresentam. São Testemunhas de Jeová, dizem, e gostariam apenas de propagar a palavra do Senhor. Respondo-lhes, com toda a delicadeza de que sou capaz, que respeito muito a sua disponibilidade, o desprendimento de estarem fazendo isso, mas que sou um tanto quanto avesso a prédicas, sobretudo às políticas e religiosas. Convido-as a visitar o jardim e aproveito para contar-lhes que essa é minha forma preferida de oração: estar em meio à natureza, plantando flores, preservando o silêncio e o verde até onde for possível. A princípio, elas parecem aquiescer e dizem "sim, que maravilha, não existe melhor maneira de louvar a Deus, etc." Mas, passados cinco minutos iniciais, como era de se esperar, lá vieram elas com Mateus, versículo tal, Lucas, capítulo tal. Ou algo parecido. Droga, pensei, como é difícil escapar dos fundamentalistas. Pior: dos fundamentalistas que te olham com uma cara de pena, achando que têm a obrigação de te salvar, que com eles está a verdade inquestionável. De fato, eu admiro os que andam por aí pregando as suas crenças, gastando horas preciosas simplesmente para disseminar o que acreditam ser o melhor. E até sinto uma pontinha de inveja. Mas o que todos querem, de fato, é colocar o cabresto nas ovelhas desgarradas. Se não fosse assim, não nos olhariam com tamanha piedade, oh, coitadinhos, precisamos avisá-los, pois eles estão trilhando o caminho do mal, da perdição. Por mais que eu me questione, chego sempre à mesma conclusão: ateu eu não sou, mas também não tenho essa fé cega, surda e muda, que parece reger cada segundo da vida dos que peregrinam com a Bíblia na mão, invocando a palavra divina. Sempre achei muito pretensioso não deixar um ponto de interrogação nessas questões de transcendência. Quem poderá saber o que nos espera depois da morte? Ou o que não nos espera? Nossos cinco precários sentidos mais embotam do que auxiliam uma possível compreensão. Mesmo os que tentam juntar fé e religião, numa tentativa bastante lógica de decifrar esses mistérios todos, não são conclusivos nunca. Aliás, não há como sê-lo. Falar é fácil, ficar gritando que amamos a humanidade inteira, idem. Mas, e quando precisamos provar isso com o colega que nos incomoda o tempo todo? Ou com aquele parente chato que costuma invadir nosso fim de semana com a mais irritante das intimidades? Maridos e esposas já nem entram mais na contabilidade. Aí é que eu quero ver. E seria bem interessante propor isso para aquelas duas mulheres que pareciam completamente envoltas numa aura de santidade. Certo, não vou radicalizar, e um voto de confiança é sempre bem-vindo. Mas o que ainda repercute em mim é aquele ar de tristeza (ou de superioridade, não sei) que eu percebia nelas toda vez que tentava lhes dizer para não perderem seu tempo comigo desfiando frases feitas. Quanto mais eu falava, mais elas se sentiam na obrigação de me salvar da danação eterna. E eu com as petúnias na mão, sem saber direito o que fazer. Porque esses evangelizadores são tão persuasivos que, ao menor descuido, lá vamos nós freqüentar o templo e, o mais importante, pagar o dízimo. Vale para testemunhas de Jeová, evangélicos, católicos, muçulmanos, militantes em geral. Fiquei pensando, pelo resto da manhã, que seria bem melhor se as pessoas apenas praticassem boas ações no seu dia-a-dia ao invés de ficar por aí espalhando catecismos que muitas vezes não nos dizem nada. Orar sim, pois já se sabe à exaustão o benefício que a prece traz, inclusive para a nossa saúde física. E, como disse o mestre Thich Nhât Hanh, é um exercício de diminuição do ego, uma vez que rezamos com os olhos voltados para o chão, ajoelhados, mais próximos da terra do que daquilo que imaginamos ser o paraíso. Nossa estatura diminui e nos damos conta de que é preciso sermos mais humildes. Eu sempre peço proteção ao meu Anjo de Guarda. Sempre. Não saio de casa sem invocar sua presença em meu dia. Mas não acredito que quem não faça isto precise ser convertido. Eu encontrei uma certa maneira de diluir um pouco o meu materialismo. E me sinto feliz assim. Vivemos todos soterrados em nossos preconceitos. A maioria deles vem disfarçada com papel de presente. Mas são sempre um perigoso veneno. Uns precisam da palavra sagrada para acreditar que estão servindo a uma causa nobre. Outros se contentam em plantar petúnias. Uns terceiros, ainda, acreditam que há tanto sofrimento no mundo que é preciso interferir, trabalhando para minimizá-lo. E assim segue o mundo. Quem poderá avaliar uma vida antes que sobrevenha o último dia? Neste longo crepúsculo, onde as formas são apenas entrevistas, temos necessidade de traduzir em linguagem individual o que se esconde na alma. Mas, de preferência, que o façamos sem incomodar muito o vizinho.
segunda-feira, 15 de janeiro de 2007
Micropolítica
Uma das posturas mais cômodas que o ser humano costuma adotar é a de dizer que, individualmente, não pode fazer nada para mudar a situação que se apresenta diante dele. Isso se evidencia mais em épocas de campanha eleitoral. Por comodismo e medo de nos posicionarmos preferimos crer que atitudes isoladas não mudam o quadro geral das coisas. Talvez não seja bem assim. É claro que uma voz solitária não tem força suficiente para alterar de modo rápido e significativo um quadro onde grassa a corrupção e o oportunismo. Mas isso não deve servir de desculpa para que a ação ceda seu lugar ao acovardamento, tornando-nos criaturas indefesas frente a uma realidade que às vezes nos esmaga. Pequenos atos podem, sim, provocar mudanças no todo. Só que isso demanda paciência, certa coragem e, principalmente, uma crença inabalável na espécie humana. Mas adotamos como lema a frase "eu não posso fazer nada, eles elaboram as leis à nossa revelia." Ninguém duvida disso, só que a questão não se exaure nesta constatação. Exemplos não faltam no nosso dia-a-dia. O que desperdiçamos de água e luz, só para ficar no mais óbvio, é absurdo. Ao acreditar que o um não afeta o todo, seguimos vida afora agindo como se estivéssemos sós no mundo e que, ao fazer essas coisas, não estamos contribuindo significativamente para a degeneração do planeta. O problema é que todos pensam assim e o caos, como se vê, já parece estar instalado. Vemos a vida de uma forma muito fragmentada, como se poucas coisas nos tocassem diretamente. Comentando com um amigo a entrevista que o ex vice-presidente americano Al Gore concedeu recentemente, sobre a rarefação da camada de ozônio, sou surpreendido com esse comentário: "Ah, mas a gente só vai sentir os efeitos reais daqui a cinqüenta, sessenta anos." E, imaginando que talvez não se esteja mais vivo, que importância pode ter isso? Além do fato de que quem polui a terra e o ar são as grandes corporações e não temos nada a ver com a história. Só que temos. Pequenas atitudes podem ser determinantes para diminuir a gravidade de um fato assim. A isso se chama consciência política. Não é preciso militar em um partido para defender determinadas idéias. Porém, no suposto isolamento de nossa casa, no contato mais imediato com as pessoas que fazem parte do nosso cotidiano, podemos influenciar a forma de pensar de um considerável número de pessoas. O micro, o pequeno, o que não aparece nas estatísticas, muitas vezes acaba mudando o curso da realidade. A existência dos que consideramos como desbravadores ou heróis pode ser traduzida numa fórmula simples: acreditar em algo, muitas vezes independente do pensamento coletivo, e partir para a ação. É sempre mais fácil ficar do lado de fora, no entanto. Criticar, quase sem embasamento real, virou uma espécie de jargão moderno. Sabe-se que, desde que o primeiro homem começou a liderar um pequeno grupo, a corrupção se instalou definitivamente dentro de nós. Quem duvida que o poder é o maior afrodisíaco já inventado? Pense no que disse o político Edgar Faure: "Quando fui ministro, algumas mulheres resistiram a mim; quando me tornei primeiro-ministro da França, nenhuma." Cínico, não? Mas verdadeiro. Continuo acreditando que em determinados assuntos temos que ser radicais. Nada de meias opiniões, meios posicionamentos. Sem contar que consciência teórica não altera o curso dos fatos. Não é preciso ter os poderes de um Nero para saber até onde vai a nossa idoneidade. Podemos testá-la na relação que temos com nosso vizinho, com o cachorro da casa, até com um desconhecido. Quando conseguimos dispensar testemunhas para a prática de algo que nos torna melhores, aí sim estaremos no caminho da retidão. A verdadeira retidão moral preconizada pelos sábios. Qualquer interferência que fazemos no mundo tem caráter político. Somos tocados por tudo que acontece ao nosso redor e por tudo que fazemos. Não existe neutralidade, isenção. Então, perceber o micro, estar ciente do que pode ser alterado no âmbito domiciliar, é quase uma obrigação que temos para que a situação do planeta não entre em colapso total.
segunda-feira, 8 de janeiro de 2007
O poder e o medo
Conheci pouquíssimas pessoas que souberam exercer o poder com sabedoria e eqüanimidade. Alguma coisa dentro de nós se perde quando o uso da autoridade se torna rotineiro. A arrogância e a prepotência ocupam o lugar da razão. O sentimento de que somos mortais é o primeiro a ser solapado. Nada parece ser capaz de nos atingir quando estamos no comando. Ultimamente, observando com maior atenção os seres possuídos por essa estranha síndrome, comecei a me dar conta de que há algo mais sutil, além destas características. Todo poder é acompanhado de altas doses de medo. Uma das coisas que mais fragiliza um ser humano é a possibilidade de se ver destituído de um cargo que lhe dá autonomia absoluta para determinar os destinos de seus subordinados. Sejam eles meia dúzia ou milhares. Aliás, é comum perder o senso de medida quando poderes minúsculos começam a ser exercidos. Olhando sem distanciamento, facilmente nos enganamos diante de homens e mulheres que descobrem o inigualável prazer de mandar. Não conseguimos perceber o grau de tensão que se esconde dentro daqueles que têm a força como a "qualidade" mais visível da personalidade. Antes de as mulheres começarem a assumir cargos de relevância, tinha-se a visão romantizada de que quando elas alçassem postos de destaque a história seria outra. Com sua sensibilidade, visão mais ampla do real, percepção dos detalhes, pensava-se que o mundo não seria mais o mesmo. A salvação, enfim encontrada. Parece que na prática isso não tem ocorrido. A ganância e a ambição despertaram a mosca azul que dormia também dentro delas. Masculino e feminino são gêneros que desaparecem no momento em que a hierarquia entra em questão. Temos exemplos bem próximos, não é preciso buscá-los em Brasília ou em outros redutos afins. Somos vulneráveis. Uma pequena plaqueta colocada na porta de entrada de nossa sala de trabalho e pronto: nada será como antes. Mas o que realmente muda dentro de nós? Por que não é possível manter o equilíbrio quando nossas forças internas são testadas? É claro que poucos afrodisíacos têm um efeito mais devastador do que o fato de nos sentirmos poderosos. Só que um dia, já o disseram, cada um de nós acaba jantando sozinho, sem a presença quase sempre comprada de quem estava ao nosso lado por obrigação, por necessidade. Alguns se dão conta disso antes do tempo, e é exatamente neste momento que o medo se instala dentro deles. Vamos pegar o exemplo mais óbvio: os políticos. Vários deles são tão ricos que não precisariam, digamos assim, trabalhar uma hora sequer de suas existências. Com polpudas e clandestinas contas no Exterior poderiam viver em eternas férias. Mas não, parece que quanto mais têm, mais precisam aumentar a sua carga. Não seria de estranhar se muitos deles adoecessem subitamente, pois é sabido que a tensão permanente, a necessidade de estar sempre lutando contra inimigos reais ou imaginários, deixa dentro de nós resíduos de veneno para sempre. Só que o medo, sempre o medo, espreita sutilmente os que ditam ordens como quem recita um poema. Ele é um tigre pronto para dar o bote. Já vi pessoas chorarem copiosamente alguns dias antes de anunciarem sua despedida desse mundo de benesses e favorecimentos. Mais parecia que estavam dando adeus a um ente amado. Porque é possível seguir tranqüilamente quando não se conheceu a prisão dourada do poder. Mas poucos têm a lucidez de abdicar dela e nem uma junta de psiquiatras pode dar conta de reestruturar a personalidade dos demais. Voltam a ser crianças desprotegidas, extremamente vulneráveis. Mas só serão novamente acessíveis quando não existir a menor chance de retornarem ao pódio. Antes que isso aconteça caminharão hirtos, com a cabeça erguida, plenos no domínio da palavra e da ação. Deslumbram-se, mas sofrem. Ainda estou para encontrar alguém que desminta esta teoria. Basta olhar para o porteiro do seu prédio. Provavelmente ele se acha tão importante quanto o presidente da República. O que conta mesmo é ser rei na própria aldeia. Uma honrosa exceção parece ser a do empresário e escritor Ricardo Semler. Autor do excelente Virando a Própria Mesa, acaba de colocar no mercado, 18 anos depois, um livro chamado Você Está Louco!, em que conta suas experiências à frente de um conglomerado de empresas com mais de cinco mil funcionários. Mas as passagens mais interessantes são aquelas em que relata seu cotidiano, principalmente quando está de férias ou meditando em sua casa. Ele escreve coisas assim: "O Parâmetro Vitruviano diz que só é possível ser feliz na proporção divina, ou seja, a altura do teto da sala tem de ser proporcional ao tamanho de uma pessoa, as refeições têm de ser distribuídas apenas de acordo com a fome, e comer folhinhas de ouro não alimenta ninguém." Só que para chegar a esse grau de compreensão, repete várias vezes, foi preciso fazer algumas visitas a um centro cardiológico para pacientes terminais e a um pequeno cemitério. A consciência de nossa finitude não precisa ser trágica. Antes, é ela que pode servir de parâmetro para avaliar o que realmente estamos fazendo e se isso é relevante para nossa felicidade. Ou constatar, com tristeza, o quanto há de sabedoria no verso de Quintana: "Há pessoas que não vivem, simplesmente fazem horas para morrer."