segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sofrer ou ser feliz?

Sofrer ou ser feliz?

Raramente, na história da raça humana, a felicidade alheia foi bem cotada. Os que sofrem parecem ter primazia em nossa admiração. A arte está recheada de exemplos que ilustram a teoria de que a dor sempre fornece enredos mais interessantes. Os muito alegres que nos perdoem, mas uma boa dose de tristeza parece ser fundamental. Vivemos sob esse axioma sentindo um certo orgulho, numa espécie de processo expiatório, como salvo-conduto para circular entre nossos pares. As religiões distribuem, neste vale de lágrimas, cheques em branco para serem descontados num futuro indeterminado. Pena-se aqui, mas lá, mais à frente, cada um de nós tem reservados os indescritíveis gozos que nos são negados enquanto habitantes deste planeta, onde prepondera o infortúnio. E assim vão sendo formadas nossas crenças sobre o mundo, as coisas e nós mesmos. Mas será que os sofredores são realmente os mais qualificados para doutorar-se no quesito sabedoria?

Estou relendo, depois de quase 20 anos, o belo romance A Imortalidade, do escritor tcheco Milan Kundera. A tantas páginas, um personagem sentencia: "O sofrimento é a Grande Escola do egocentrismo". Verdade, nunca somos tão egoístas como quando estamos sofrendo, seja física ou psiquicamente. Por certo há os iluminados que transformam esta experiência numa espécie de ascese espiritual, num encurtamento do caminho que pode nos alçar até Deus (ou seja lá que nome queiramos lhe dar). Mas, perdoem minha incredulidade, a esmagadora maioria se apequena, enquanto o pronome "Eu" ganha proporções abissais. Nada é mais importante do que a dor que estão sentindo naquele momento. Existe quase que uma reinvenção da própria linguagem, que consiste em priorizar o singular e preterir o outro, o diferente.

Lembro que em minha adolescência eu nutria uma espécie de prazer sensual em me sentir deprimido. Por um triz, não saía por aí gritando para os meus amigos: "Olhem pra mim, vejam como eu estou infeliz!". Muito provavelmente para chamar a atenção, para ser o centro dos olhares e dos sentimentos alheios. Era a fórmula que me parecia mais convincente. Foi necessária a passagem de muitos anos para me dar conta de que teria sido razoavelmente simples reverter esse processo de melancolia, uma vez que deprimido, clinicamente falando, eu nunca fui. Quando descobri que dava bem menos trabalho ser feliz, foi um Deus nos acuda. Corri em busca de todo tempo perdido e hoje minha maior vingança, quando um problema de proporções consideráveis me assola, é me debruçar atentamente sobre ele e tentar resolvê-lo o mais rapidamente possível. Não costumo acariciar a dor.

Embora este texto esteja tomando uma direção confessional, a real intenção é refletir sobre uma espécie de distorção que acontece em nossa cabeça quando a questão é a "escolha" entre a felicidade e o sofrimento. Estou expondo simplistamente a situação, pois minhas noções psicanalíticas são as de um mero amador. Talvez a escolha desse assunto tenha sido a reação de uma amiga alguns dias atrás. Quem me conhece o suficiente (existe o suficiente?) sabe que sou bem-humorado, meio palhaço, enfim, que acho a vida uma experiência grandiosa e que não vale a pena desperdiçá-la com lamúrias. Pois essa minha amiga, numa conversa corriqueira com uma terceira pessoa presente, perguntou-lhe, à queima-roupa: "Mas o Gil é sempre assim, tão alegre, de bem com tudo?". É muito agradável poder responder que sim, que via de regra sou uma pessoa feliz. Que, a despeito de tantos problemas que todos temos que enfrentar, da presença de enfermidades, do excesso de trabalho que às vezes nos esgota, de frustrações diversas, da percepção da velhice para a qual inexoravelmente todos caminhamos, não posso reclamar da vida. Tenho o que me parece essencial para estar bem: o afeto sincero das pessoas com quem convivo, muitos, muitos amigos, uma família que me acolhe e a liberdade de me expressar artística, profissional e amorosamente da maneira que me parece a ideal. Não passei por grandes privações, tenho acesso, material e cultural, ao que considero relevante. Não conheci perdas que não pudesse superar. Olho para a frente e sempre me imagino multiplicando tudo isso. O que virá depois eu não sei e também não me interessa muito.

A palavra religião tem um único sentido para mim: tentar ser bom para si e para os outros. Dificilmente atravessarei o futuro sem decepções ou sem o conhecimento da dor. O balanço final será feito mais adiante, espero que bem mais adiante. Por hora, fundamento minha convicção de que o sofrimento não costuma melhorar muito as pessoas. Em diversos casos ele as torna mais raivosas. "Por que comigo?", parecem perguntar o tempo todo. Tem o seu cadinho de perigo conviver com quem se sente vítima. Parece bem melhor nos aproximarmos daqueles que denotam certa vocação para a felicidade. Na brevidade de tudo, resta o consolo de descobrir que a possibilidade de administrar a própria consciência não pode ser desperdiçada. Talvez a vida seja um jogo, uma partida que poderá ser disputada uma única vez. Nem sempre é possível escolher as cartas. Muitas vezes gostaríamos de trocá-las. Mas o melhor mesmo é seguir jogando como se tivéssemos muitos curingas na mão.