quinta-feira, 29 de novembro de 2007

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Pequenas injustiças

Pequenas injustiças

Há noites em que me mortifico. Assim que coloco a cabeça no travesseiro, ponho-me a pensar: será que ofendi um amigo, alguém com quem travei relações passageiras ou mesmo um desconhecido? Porque, ao agir de maneira inconseqüente, ou mesmo sem querer, podemos estar magoando pessoas que atravessam os nossos dias. Lembro-me do escritor Marcel Proust, sempre tão preocupado em ser gentil com os outros. Toda vez que saía de um restaurante com a impressão de não ter sido delicado o suficiente, ou mesmo generoso, com quem o havia servido tão bem, retornava ao local para se desculpar ou, no mínimo, deixar uma gorjeta mais substancial. Não sei se é preciso chegar a tanto. Já não parecemos capazes de ver o outro como uma extensão de nós mesmos, mas preocupa-me, e muito, a dúvida sobre se eu poderia ter agido de maneira mais fraterna com este ou aquele ser cuja presença ainda preenche os momentos que precedem meu sono.

Tão difícil saber até onde se pode ir em palavras e atos. O que me parece prosaico, banal, sem importância alguma talvez adquira uma dimensão estratosférica para quem tem um tipo diferente de sensibilidade. O que não me toca pode deixar uma ferida aberta em meu amigo. Como fazer para não lhe causar dor? Tão fechados estamos em nossa concha doméstica que raramente nos damos conta de que podemos machucar pessoas que nos são caras. E é nos gestos miúdos, nas palavras proferidas aleatoriamente, que isso mais acontece. Quando as coisas parecem claras, quando os holofotes da verdade e da mentira, ou mesmo das falsas certezas absolutas, incidem sobre nós e os outros, fica fácil distinguir as reais intenções de nosso agir. Difícil mesmo é caminhar por essas pequenas veredas onde tudo é insinuado, onde tudo acaba se perdendo dentro do banal, do que não merece um registro maior.

Tenho muito medo de causar dor em pessoas, bichos, plantas. Há em mim uma percepção de que tudo pulsa e que é necessário caminhar com cuidado para não desorganizar todo um sistema que vive ao nosso redor. Se somos dotados de um sentir mais sutil, se não queremos que nos causem sofrimento, por que esse cuidado rarefeito quando se trata de quem convive com a gente? Na ligeireza de nossas ações cotidianas, é inevitável que acabemos externando uma sentença áspera, um gesto mais violento, uma ausência que dói em quem depositou em nós esperança de cumplicidade. Fazer exames periódicos de consciência pode ajudar a diminuir a quantidade de injustiças que cometemos tão comumente. Se temos dificuldade em entender o que se passa dentro de nós, imagine se vamos nos preocupar em descobrir as razões que determinam o sofrimento de nossos pares vida afora. É sempre invisível esse corte que abrimos na pele do vizinho, do colega de trabalho, em nosso irmão, pai ou mãe. Tudo porque é difícil entender o território estrangeiro de alguém que não somos nós. Fico repetindo para eu mesmo: "tenha cuidado, tenha um pouco mais de cuidado".

Nem sempre há uma intenção maldosa em nosso agir, exceto quando a alma adoece e já não sabe mais distinguir a justiça da arrogância. Não raro nos deparamos com homens e mulheres que propositalmente procuram mostrar uma frágil marca de superioridade espezinhando qualquer um que simplesmente passe pelo seu caminho. Mas com a grande maioria, o que acontece é simplesmente distração. Entre um afazer e outro, trocamos frases que muitas vezes acabam com a serenidade de quem está ao nosso lado. Eu sempre pensei na delicadeza como uma espécie de virtude capital, a mais necessária para viver em sociedade, para estabelecer um sentido de grandeza em nossas relações.

O primeiro passo para tentar alcançar um estado satisfatório de humanidade talvez seja ir limando os inúmeros preconceitos que permeiam nossa maneira de agir e interagir. Por que pensar em termos de raça, de profissão, de preferência sexual, de conta bancária? No começo e no fim somos rigorosamente iguais. No meio, cada um tenta ser feliz, somente isso. O problema está nas armas que usamos quando nos sentimos ameaçados, sem perceber que todos se sentem em perigo e todos partem para a guerra desconhecendo o porquê. Confesso que tenho passado horas e mais horas buscando descobrir como poderia ser mais educado, evitando conflitos desnecessários, não levantando inutilmente a voz toda vez que me sinto desafiado. Já é alguma coisa refletir sobre isso, mesmo que raramente transformemos as intenções em prática efetiva. Relembro seguidamente os quatro votos budistas. É uma espécie de oração que orienta minha existência. Creio que tudo está contido nessas pequenas proposições com mais de 25 séculos. São elas: "Lutar contra as más tendências; dedicar-se até o fim aos estudos; aperfeiçoar-se na medida do possível; por mais numerosas que sejam as criaturas do universo, trabalhar para salvá-las". Não se pode exigir mais de nós. Não se deve exigir menos. Neste delicado equilíbrio situa-se o espaço que define os deuses e os homens. É preciso escolher uma das moradas.