Orai, irmãos
Estou plantando petúnias na chácara enquanto ouço o canto dos pássaros. São nove horas de uma bela manhã de sábado. Sinto um ruído de passos que se aproximam. Duas simpáticas senhoras e uma criança se apresentam. São Testemunhas de Jeová, dizem, e gostariam apenas de propagar a palavra do Senhor. Respondo-lhes, com toda a delicadeza de que sou capaz, que respeito muito a sua disponibilidade, o desprendimento de estarem fazendo isso, mas que sou um tanto quanto avesso a prédicas, sobretudo às políticas e religiosas. Convido-as a visitar o jardim e aproveito para contar-lhes que essa é minha forma preferida de oração: estar em meio à natureza, plantando flores, preservando o silêncio e o verde até onde for possível. A princípio, elas parecem aquiescer e dizem "sim, que maravilha, não existe melhor maneira de louvar a Deus, etc." Mas, passados cinco minutos iniciais, como era de se esperar, lá vieram elas com Mateus, versículo tal, Lucas, capítulo tal. Ou algo parecido. Droga, pensei, como é difícil escapar dos fundamentalistas. Pior: dos fundamentalistas que te olham com uma cara de pena, achando que têm a obrigação de te salvar, que com eles está a verdade inquestionável. De fato, eu admiro os que andam por aí pregando as suas crenças, gastando horas preciosas simplesmente para disseminar o que acreditam ser o melhor. E até sinto uma pontinha de inveja. Mas o que todos querem, de fato, é colocar o cabresto nas ovelhas desgarradas. Se não fosse assim, não nos olhariam com tamanha piedade, oh, coitadinhos, precisamos avisá-los, pois eles estão trilhando o caminho do mal, da perdição. Por mais que eu me questione, chego sempre à mesma conclusão: ateu eu não sou, mas também não tenho essa fé cega, surda e muda, que parece reger cada segundo da vida dos que peregrinam com a Bíblia na mão, invocando a palavra divina. Sempre achei muito pretensioso não deixar um ponto de interrogação nessas questões de transcendência. Quem poderá saber o que nos espera depois da morte? Ou o que não nos espera? Nossos cinco precários sentidos mais embotam do que auxiliam uma possível compreensão. Mesmo os que tentam juntar fé e religião, numa tentativa bastante lógica de decifrar esses mistérios todos, não são conclusivos nunca. Aliás, não há como sê-lo. Falar é fácil, ficar gritando que amamos a humanidade inteira, idem. Mas, e quando precisamos provar isso com o colega que nos incomoda o tempo todo? Ou com aquele parente chato que costuma invadir nosso fim de semana com a mais irritante das intimidades? Maridos e esposas já nem entram mais na contabilidade. Aí é que eu quero ver. E seria bem interessante propor isso para aquelas duas mulheres que pareciam completamente envoltas numa aura de santidade. Certo, não vou radicalizar, e um voto de confiança é sempre bem-vindo. Mas o que ainda repercute em mim é aquele ar de tristeza (ou de superioridade, não sei) que eu percebia nelas toda vez que tentava lhes dizer para não perderem seu tempo comigo desfiando frases feitas. Quanto mais eu falava, mais elas se sentiam na obrigação de me salvar da danação eterna. E eu com as petúnias na mão, sem saber direito o que fazer. Porque esses evangelizadores são tão persuasivos que, ao menor descuido, lá vamos nós freqüentar o templo e, o mais importante, pagar o dízimo. Vale para testemunhas de Jeová, evangélicos, católicos, muçulmanos, militantes em geral. Fiquei pensando, pelo resto da manhã, que seria bem melhor se as pessoas apenas praticassem boas ações no seu dia-a-dia ao invés de ficar por aí espalhando catecismos que muitas vezes não nos dizem nada. Orar sim, pois já se sabe à exaustão o benefício que a prece traz, inclusive para a nossa saúde física. E, como disse o mestre Thich Nhât Hanh, é um exercício de diminuição do ego, uma vez que rezamos com os olhos voltados para o chão, ajoelhados, mais próximos da terra do que daquilo que imaginamos ser o paraíso. Nossa estatura diminui e nos damos conta de que é preciso sermos mais humildes. Eu sempre peço proteção ao meu Anjo de Guarda. Sempre. Não saio de casa sem invocar sua presença em meu dia. Mas não acredito que quem não faça isto precise ser convertido. Eu encontrei uma certa maneira de diluir um pouco o meu materialismo. E me sinto feliz assim. Vivemos todos soterrados em nossos preconceitos. A maioria deles vem disfarçada com papel de presente. Mas são sempre um perigoso veneno. Uns precisam da palavra sagrada para acreditar que estão servindo a uma causa nobre. Outros se contentam em plantar petúnias. Uns terceiros, ainda, acreditam que há tanto sofrimento no mundo que é preciso interferir, trabalhando para minimizá-lo. E assim segue o mundo. Quem poderá avaliar uma vida antes que sobrevenha o último dia? Neste longo crepúsculo, onde as formas são apenas entrevistas, temos necessidade de traduzir em linguagem individual o que se esconde na alma. Mas, de preferência, que o façamos sem incomodar muito o vizinho.
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