segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Pequeno, bem pequeno

Pequeno, bem pequeno

Costumamos ficar assombrados toda vez que lemos ou assistimos na televisão a notícia de um roubo vultoso, do desvio de dinheiro público ou de uma grande tragédia. Sem dúvida, números superlativos exercem grande influência sobre nossa maneira de pensar o mundo. Ficamos chocados, estarrecidos, ensaiando revoltas que geralmente não ultrapassam o discurso que proferimos entre as refeições ou em conversas ligeiras com amigos. Por outro lado, sempre me espantou o fato de aceitarmos tácita e passivamente a transgressão miúda, discreta, quase invisível. O vizinho que adora jogar papel de bala pela janela do carro quando está dirigindo, o conhecido que não consegue esperar pelo sinal verde do semáforo, o simpático verdureiro que costuma nos enganar em suas contas.

Gestos que aparentemente não merecem nossa atenção podem ser (e geralmente são) o embrião, a porta de entrada para o mundo das grandes corrupções, do afrouxamento da ética. Quem está propenso a ser desonesto no pequeno, certamente não se importará em praticar delitos maiores quando a ocasião assim o permitir. A tolerância ou o descaso diante de situações mais modestas são o passaporte para despertar o nosso delinqüente interno, aquele que quer tirar vantagem sempre que possível. Isso vale para todos. É mais do que sabido que muitas pessoas cheias de boas intenções e belas teorias sucumbem diante da primeira chance de mostrar o seu lado menos nobre. Sinto-me tentado a crer que passamos a vida domando o que há de ruim dentro de nós. Portanto, nada mais compreensível do que o exercício ocasional de algumas transgressões. A questão é unicamente de oportunidade. Tudo nos leva a crer que a honestidade é uma espécie de suspensão de nosso estado natural de ser. Ficamos indignados toda vez que somos informados que um político legislou em causa própria ou se adonou de uma quantia que não lhe pertencia. Eu já não me espanto. Rasgamos nossa biografia com a maior facilidade.

Impossível avaliar o nosso grau de honestidade enquanto não pudermos testar a resistência que temos diante das ofertas que se apresentam. Seria preciso dar a cada um de nós os poderes de um César para pôr à prova a nossa têmpera, já nos ensinaram. Somos todos ótimos em discursar contra aqueles que merecem a condenação geral. Juntamo-nos ao coro dos descontentes, esquecendo que muito provavelmente nossas ações não seriam diversas se lá estivéssemos. Se você mora numa favela, se é privado do essencial, se vive corroído pela vontade de possuir bens materiais que lhe são inacessíveis, é bastante previsível que vá se manifestar ferozmente contra os que têm acesso a tudo isso. Só que acaba esquecendo de analisar o próprio comportamento. Nossa tendência é a de sermos predadores, grandes ou pequenos, de estarmos sempre prontos a dar o salto e abocanhar o que cremos nos pertencer por direito. Procuramos atenuar a culpa jogando a responsabilidade pelas desgraças da humanidade sobre aqueles que são exemplos acabados de corrupção.

Muitas vezes nos sentimos autorizados a ir além do que nossos valores nos permitem. Se ninguém estiver olhando, ótimo. E se for bem longe de casa, aí será perfeito. É mais ou menos a mesma história do marido que não acredita estar enganando a mulher se tiver uma aventura em outro estado ou em outro país, com alguém desconhecido. Fidelidade geográfica? Honestidade a conta-gotas? Desculpem, não acredito nisso. Quem é íntegro, quem discursa e pratica o que discursa (devem existir ainda alguns), por certo o faz no mais prosaico e privado dos atos. Esses não costumam furar a fila e devolvem o troco a mais que lhe é dado. Não é preciso que ninguém lhe aponte o erro, a transgressão. Mas, quantos de nós age assim? Passamos os dias desencantados com os políticos, os empresários, os grandes líderes. Não somos muito diferentes deles, apenas estamos em outro lugar e em outra situação.

É sempre bom observar primeiro o que acontece conosco. Treinar os propalados bons princípios no dia-a-dia e ser menos tolerante com os próprios deslizes, por menores que pareçam. Vivemos distraídos de nós porque é mais fácil creditar aos outros a obscuridade de determinados comportamentos. Avaliar a nossa desonestidade em centímetros não dá autoridade para nos escandalizarmos com quem a pratica em larga escala. Não há grande diferença entre esta e aquela. O que varia é tão somente a punição que a sociedade costuma imputar a uns e outros. Não somos anjos nem demônios, mas só conseguiremos descobrir isso depois de fazer um test drive.