segunda-feira, 2 de setembro de 2013

REFÉNS

Passamos anos sem perceber. Às vezes, uma vida inteira. Sem correntes visíveis que nos aprisionam, sem qualquer tipo de violência explícita, acabamos nos tornando reféns dentro de nossa casa, em nosso trabalho, no círculo íntimo de amigos e colegas. Por um gesto de afeto, um salário melhor e até por compaixão, acreditamos que devemos emprestar nosso tempo e ouvidos para acolher o que nos incomoda, o que não está em consonância com o nosso jeito de ser feliz. Essa sensação de desconforto vai se instalando de forma sutil dentro de nós. Muitos nem se dão conta. Outros, por uma espécie de inércia emocional, vão deixando tudo como está, mesmo cientes de que perdem algo valioso. Mas há os que, numa atitude mais corajosa, preferem o enfrentamento e a ruptura, pondo fim a um círculo vicioso que ameaçava se perpetuar.

A perda de pessoas que amamos instaura uma espécie de radar dentro de nós. Um dia a mais é, na verdade, um dia a menos. Não se pode ficar por aí desperdiçando tardes ensolaradas, auroras encharcadas de lirismo, domingos aquietados. Há que se manter fidelidade a uma existência que não compactua com as traições. Nem sempre podemos ensaiar despedidas. Assim, a observação permanente do que acontece ao nosso redor pode ser uma boa maneira de perceber o que está errado, o que merece conserto ou, simplesmente, deve ser descartado. Somos carentes, no entanto. Quando não movidos por interesses. Fazemos muitas barganhas para não perder algum conforto ou mesmo a atenção de alguém, pouco importando o preço a ser pago. Casamentos que costumam ser encenados num ringue, onde a agressão e o descaso pontuam cada ação, cada frase dita. Tarefas enfadonhas, repetitivas, que nos fazem consultar o relógio de cinco em cinco minutos. Amigos que não acolhem, só precisam de nós como um receptáculo passivo onde depositam seus dramas domésticos. É imensa a lista na qual podemos detectar o perigo de nos tornarmos reféns.

É possível que, para nos libertarmos dessas prisões, tenhamos que revisar muitas das posturas que fomos adotando e que se sedimentaram. Estamos inseridos numa sociedade onde o espetáculo se tornou a força motriz. Ver e ser visto? Obrigação de todos. E depois de certa idade, o estado civil ainda tem um relativo peso na aceitação de nossos pares. Se você acha essa observação ultrapassada, pergunte para algumas mulheres solteiras depois dos 40 anos. Ainda persistem muitos preconceitos.

Romper relações é igualmente difícil. O mesmo acontece com um trabalho tedioso, mas bem remunerado. E se o amigo de longa data se transformou num chato em tempo integral, alguma culpa de fundo religioso nos diz que precisamos continuar acolhendo-o. Essas armadilhas são muito sutis e, para quem é desatento ou mesmo preguiçoso (e quantos de nós não o somos!), adota-se sempre a mesma evasiva: deixe ficar como está, poderia ser pior. Um consolo modesto diante da certeza de que tudo se esgota rapidamente.

O que é realmente importante não custa quase nada: um livro, caminhar, não mais do que duas dúzias de roupas, idas regulares ao cinema, alimentos saudáveis, abraços, algumas horas para não fazer absolutamente nada. E o luxo supremo: meditar. Ao percebermos o quão pouco vale a maioria das coisas pelas quais passamos décadas lutando, o presente que obtemos é um estado confortável de relaxamento. Físico e emocional. Podemos ser empurrados ao encontro dessa consciência quando nos damos conta da nossa própria mortalidade. Mas não como um mero exercício especulativo, filosófico. Tem que ser algo orgânico, que queime a pele, que nos assuste.

Tenho sido mais feliz desde o momento em que comecei a relativizar quase tudo. Economizei muita dor e sofrimento desnecessário. Meus dias têm horas suficientes para tudo o que desejo fazer. Estou aprendendo a cortar, a selecionar, enchendo contêineres de lixo que costumava guardar dentro de mim.