terça-feira, 4 de novembro de 2008

Inicio do curso de mergulho
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Um pé lá, outro cá

Um pé lá, outro cá

Tenho observado um fato interessante, que envolve algumas pessoas com quem convivo. Sabe aquela criatura devotadíssima, que esfola os joelhos nos bancos das igrejas ou de centros religiosos, quase todos os dias? Aquela que, de oração em oração, acredita estar comprando o seu quinhão de céu e se apresentará com saldo positivo diante de Deus? Pois é justamente essa que muitas vezes se esquece de ser correta, justa, solidária com os que estão próximos. É um fenômeno curioso. Não sei como funcionam suas mentes, mas a verdade é que estar com um pé do lado de lá parece desobrigá-las do cumprimento de algumas regras que definem a honestidade e a delicadeza que deve revestir as relações humanas. É instigante constatar que um leve afastamento do mundo material costuma gerar certo descuido nos comportamentos do dia a dia.

Conheci uma senhora que estava sempre pronta a reafirmar a importância de sermos bons e justos, de nos conscientizarmos, desde cedo, da lei do carma e coisa e tal. Era uma espírita convicta. Mas poderia ser católica, umbandista, evangélica, tanto faz. Ela vivia mais no além do que entre os seus. Tudo tinha uma significação que escapava a nós, mortais comuns, que ainda não haviam despertado para a revelação, não haviam se conectado com o divino. Pois seu discurso, sempre inflamado e repleto de citações bíblicas e kardecistas, não costumava coincidir com as atitudes que ela tinha com seus colegas e subordinados. Dava ordens aos gritos, era grosseira, tinha um aspecto altivo. Olhava para todos com certo desprezo piedoso, por assim dizer, sonhando com o dia em que poderia enfim viver entre criaturas iguais a ela, elevadas, que fossem capazes de compreender sua evolução. A pobre, já falecida, talvez tenha levado um susto ao descobrir (ou não) que a sua verdade era apenas... a sua verdade.

Ter fé, praticar uma religião com coerência e disciplina, certamente pacifica o nosso espírito e nos torna seres melhores. Mas o que eu tenho visto, com muita assiduidade, é um distanciamento entre o discurso e a prática. Quanto mais se clama usando o nome de Deus, mais se costuma esquecer que ao nosso lado existem pessoas de carne e osso, materializadas, e que é preciso conviver com elas, respeitando suas crenças e a maneira com que acolhem o mundo. Uma atitude muito comum entre quem vive na área rural (onde eu moro) é acreditar que apenas o ato de ir à missa, confessar-se e comungar é suficiente para conseguir uma espécie de perdão amplo e geral para os pecados cometidos. Eu posso bater, maltratar, xingar. Posso ser cruel com minha esposa, com meus filhos e animais domésticos. Logo ali adiante, ao custo mínimo de um arrependimento provisório e de uma hóstia abençoada, serei isentado de qualquer multa, de qualquer pendência com o além.

Não pratico religião alguma. Leio a Bíblia com assiduidade, medito e gosto muito dos princípios contidos no budismo e no espiritismo. Mas não freqüento templos. Não quero me filiar a nada. Já acho bem difícil cumprir todas as demandas da nossa realidade física. Não costumo me envolver em rituais, embora, no sentido estético, os considere valiosos. E, sinceramente, ouso crer que o cuidado que tenho com quem me é próximo não depende da quantidade de preces que dirijo aos céus. Procuro ouvir os outros com atenção, cuido de familiares doentes que dependem de mim. Justiça e atitudes éticas não podem estar subordinadas às nossas crenças. A menos que o nome que queiramos dar a isso seja medo. Porque na grande maioria das vezes só refreamos nossos piores instintos porque tememos algum castigo lá de cima. Enfim, que também para isso sirva a fé: para impedir que o predador que mora dentro de nós ocupe um espaço ainda maior do que se vê por aí.

Como os ritos vêm carregados de emoção, não se pode apelar para a racionalidade em casos como o descrito. Simplesmente, se crê porque se crê. E há, certamente, uma grande beleza nesses comportamentos que resvalam na inconsciência, na entrega fortuita, distanciados da lógica. Mas, há que se prestar atenção para não deixar de lado o mais essencial nessa vida: o respeito à diferença, a generosidade em acolher o outro pacientemente, sem impor-lhe as nossas próprias viseiras. Que queiramos uma certa garantia, já colocando um pé do lado de lá, é opção que cabe a cada um fazer. Ruim é quando, como fazia minha amiga, espalhamos arruda e aspergimos água benta pela casa, esquecendo de cuidar dos atos que afetam os que convivem conosco. O que não faz sentido é reduzir tudo a um discurso para conseguir poder, fama e dinheiro. Tudo é pop. Padres e pastores costumam se confundir com artistas de novela nesse mundo efêmero das celebridades. Todos rezam para angariar admiradores, apenas mudam as armas usadas para seduzir. Ainda acredito que a melhor maneira de servir a Deus é espalhando boas ações e silêncio, muito silêncio. E estando sempre atento para o que diz o Salmo 49: "O homem não pode comprar seu resgate,/ nem pagar a Deus seu preço;/ o resgate de sua vida é tão caro/ que seria sempre insuficiente/ para o homem sobreviver,/ sem nunca ver a cova."

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sofrer ou ser feliz?

Sofrer ou ser feliz?

Raramente, na história da raça humana, a felicidade alheia foi bem cotada. Os que sofrem parecem ter primazia em nossa admiração. A arte está recheada de exemplos que ilustram a teoria de que a dor sempre fornece enredos mais interessantes. Os muito alegres que nos perdoem, mas uma boa dose de tristeza parece ser fundamental. Vivemos sob esse axioma sentindo um certo orgulho, numa espécie de processo expiatório, como salvo-conduto para circular entre nossos pares. As religiões distribuem, neste vale de lágrimas, cheques em branco para serem descontados num futuro indeterminado. Pena-se aqui, mas lá, mais à frente, cada um de nós tem reservados os indescritíveis gozos que nos são negados enquanto habitantes deste planeta, onde prepondera o infortúnio. E assim vão sendo formadas nossas crenças sobre o mundo, as coisas e nós mesmos. Mas será que os sofredores são realmente os mais qualificados para doutorar-se no quesito sabedoria?

Estou relendo, depois de quase 20 anos, o belo romance A Imortalidade, do escritor tcheco Milan Kundera. A tantas páginas, um personagem sentencia: "O sofrimento é a Grande Escola do egocentrismo". Verdade, nunca somos tão egoístas como quando estamos sofrendo, seja física ou psiquicamente. Por certo há os iluminados que transformam esta experiência numa espécie de ascese espiritual, num encurtamento do caminho que pode nos alçar até Deus (ou seja lá que nome queiramos lhe dar). Mas, perdoem minha incredulidade, a esmagadora maioria se apequena, enquanto o pronome "Eu" ganha proporções abissais. Nada é mais importante do que a dor que estão sentindo naquele momento. Existe quase que uma reinvenção da própria linguagem, que consiste em priorizar o singular e preterir o outro, o diferente.

Lembro que em minha adolescência eu nutria uma espécie de prazer sensual em me sentir deprimido. Por um triz, não saía por aí gritando para os meus amigos: "Olhem pra mim, vejam como eu estou infeliz!". Muito provavelmente para chamar a atenção, para ser o centro dos olhares e dos sentimentos alheios. Era a fórmula que me parecia mais convincente. Foi necessária a passagem de muitos anos para me dar conta de que teria sido razoavelmente simples reverter esse processo de melancolia, uma vez que deprimido, clinicamente falando, eu nunca fui. Quando descobri que dava bem menos trabalho ser feliz, foi um Deus nos acuda. Corri em busca de todo tempo perdido e hoje minha maior vingança, quando um problema de proporções consideráveis me assola, é me debruçar atentamente sobre ele e tentar resolvê-lo o mais rapidamente possível. Não costumo acariciar a dor.

Embora este texto esteja tomando uma direção confessional, a real intenção é refletir sobre uma espécie de distorção que acontece em nossa cabeça quando a questão é a "escolha" entre a felicidade e o sofrimento. Estou expondo simplistamente a situação, pois minhas noções psicanalíticas são as de um mero amador. Talvez a escolha desse assunto tenha sido a reação de uma amiga alguns dias atrás. Quem me conhece o suficiente (existe o suficiente?) sabe que sou bem-humorado, meio palhaço, enfim, que acho a vida uma experiência grandiosa e que não vale a pena desperdiçá-la com lamúrias. Pois essa minha amiga, numa conversa corriqueira com uma terceira pessoa presente, perguntou-lhe, à queima-roupa: "Mas o Gil é sempre assim, tão alegre, de bem com tudo?". É muito agradável poder responder que sim, que via de regra sou uma pessoa feliz. Que, a despeito de tantos problemas que todos temos que enfrentar, da presença de enfermidades, do excesso de trabalho que às vezes nos esgota, de frustrações diversas, da percepção da velhice para a qual inexoravelmente todos caminhamos, não posso reclamar da vida. Tenho o que me parece essencial para estar bem: o afeto sincero das pessoas com quem convivo, muitos, muitos amigos, uma família que me acolhe e a liberdade de me expressar artística, profissional e amorosamente da maneira que me parece a ideal. Não passei por grandes privações, tenho acesso, material e cultural, ao que considero relevante. Não conheci perdas que não pudesse superar. Olho para a frente e sempre me imagino multiplicando tudo isso. O que virá depois eu não sei e também não me interessa muito.

A palavra religião tem um único sentido para mim: tentar ser bom para si e para os outros. Dificilmente atravessarei o futuro sem decepções ou sem o conhecimento da dor. O balanço final será feito mais adiante, espero que bem mais adiante. Por hora, fundamento minha convicção de que o sofrimento não costuma melhorar muito as pessoas. Em diversos casos ele as torna mais raivosas. "Por que comigo?", parecem perguntar o tempo todo. Tem o seu cadinho de perigo conviver com quem se sente vítima. Parece bem melhor nos aproximarmos daqueles que denotam certa vocação para a felicidade. Na brevidade de tudo, resta o consolo de descobrir que a possibilidade de administrar a própria consciência não pode ser desperdiçada. Talvez a vida seja um jogo, uma partida que poderá ser disputada uma única vez. Nem sempre é possível escolher as cartas. Muitas vezes gostaríamos de trocá-las. Mas o melhor mesmo é seguir jogando como se tivéssemos muitos curingas na mão.

segunda-feira, 3 de março de 2008

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Jogos de sedução

Jogos de sedução

Elas reclamam. Muito. Dizem que os moços, esses moços, já não se interessam mais em levar a relação adiante quando recebem o sinal verde. A sedução parece não ser capaz de prescindir do mistério, da dúvida, a cruel dúvida que nos faz investir, mesmo com o medo de ser rejeitado. Tudo parece se resumir numa única frase: "É só ter a certeza de que gosto dele e pronto, é como se um balde de água fria caísse sobre minha cabeça". Difícil essa história de homens e mulheres se encontrando para uma investida amorosa. Sexo é outra coisa. É tão bom quanto, mas não se dá ao luxo de preterir a presa do momento. Disponibilidade é questão de desejo. E desejo precisa e deve ser saciado. De preferência, o mais rápido possível.

Não sou PhD no assunto, mas fico bastante espantado quando vejo relacionamentos que poderiam ser muito promissores chegar ao fim só porque um dos jogadores não soube usar a tática adequada para vencer a partida. E aí fica cada um no seu canto, reclamando deste mundo cruel, todo feito de solidão e dor. Claro que um charme aqui, outro acolá, não pode ser dispensado, sob pena de começar o namoro como se já estivéssemos comemorando bodas de ouro. Todo flerte pressupõe esse "ai, eu não quero, nem adianta insistir", morrendo de vontade de fazer o contrário. Braços e mãos e boca em ação desenfreada. Mas os olhos, os olhos que não traem nunca... difícil fazer de conta que não estamos nem aí.

Uns de Marte, outros de Vênus, quem já não decorou essa expressão? O fato é que estamos tendo dificuldade em estabelecer vínculos onde a sinceridade predomine. Não dá para gostar e dizer que gosta, mesmo? Assim, simples e objetivamente? Que bichos estranhos nós somos. Até nossas historinhas de amor precisam ter um enredo onde o comandante da hora dá as ordens. Talvez tudo se resuma a isso mesmo: poder. É preciso dominar e ter a convicção de que a presa, frágil e surpreendida, caiu na armadilha. Doce e sonhada, mas ainda assim, uma armadilha. Eles reclamam menos do que elas. Numa pesquisa informal que fiz sobre o assunto, as queixas são, em sua quase totalidade, das mulheres. Horas e mais horas de produção em frente ao espelho, combina calça com detalhe da blusa, sapato de salto altíssimo, e batom e cabelo e coisa e tal... E o resultado, enfim, não varia muito. Frustrante. São elas que dizem. Meu papel é o de ser um discreto interlocutor, aquele que ouve, acolhe as queixas e as processa mentalmente na hora da reflexão.

Considerando o grau de insatisfação que isso tem gerado, e se me fosse solicitado um parecer, nem em sonhos eu pensaria em sugerir que fossem desvelados todos os mistérios, tirados todos os véus. Quem não sabe que a noite seduz muito mais do que a luz do sol? A sutileza e um certo ar de desinteresse sempre surtiram um efeito danado. Ninguém duvida que nossa raça não corre o menor risco de extinção. Brinca aqui, brinca ali e os casamentos têm proliferado de maneira emocionante. Para alguns, até assustadora. Porém, feitas as contas, pode-se concluir que estratégias amorosas são usadas por muitas espécies animais. Mas não precisamos exagerar. Em tempos como esses que vivemos, quando a disponibilidade parece estar implícita em cada frase de apresentação, não deixa de ser paradoxal tantas queixas aparecerem nas conversas rotineiras das garotas. Talvez seja simplesmente uma questão de ajustes. E de descobrir se existe muito alarido de um lado ou um exagerado desinteresse do outro. Uma amiga confidenciou: "Eu não tenho a menor vontade de ficar desempenhando o papel da difícil, daquela que parece estar eternamente em busca do príncipe encantado. Se eu gosto, nada me faz dizer o contrário. Só que nos 15 primeiros minutos parece que a partida já está perdida". A pouca predisposição em se comprometer amorosamente só tem feito aumentar o coro dos descontentes. Não sei se há 40 ou 50 anos era diferente. Alguns juram que sim. Provavelmente fosse mais complicado aproximar um homem e uma mulher, só isso. Deus nos livre de voltar ao tempo em que parecíamos dois grupos de estrangeiros falando línguas diferentes. Pelo menos agora a comunicação não está tão difícil. Mas que ainda existem muitos mal-entendidos, isso se evidencia pela lista de queixas que qualquer solteiro que anda à espreita de seu par tem para relatar.

No mais, toda essa brincadeira pode ser divertida para quem tem espírito juvenil, adolescente. Desconfio que a maturidade quer repousar seu cansaço dentro da concha de outras mãos, sem a necessidade de ser um estrategista 24 horas por dia. Até porque bons jogadores nem sempre precisam ou conseguem chegar ao pódio. Muitas vezes, o prazer se concentra todo em ensaiar algumas novas jogadas.