O poder e o medo
Conheci pouquíssimas pessoas que souberam exercer o poder com sabedoria e eqüanimidade. Alguma coisa dentro de nós se perde quando o uso da autoridade se torna rotineiro. A arrogância e a prepotência ocupam o lugar da razão. O sentimento de que somos mortais é o primeiro a ser solapado. Nada parece ser capaz de nos atingir quando estamos no comando. Ultimamente, observando com maior atenção os seres possuídos por essa estranha síndrome, comecei a me dar conta de que há algo mais sutil, além destas características. Todo poder é acompanhado de altas doses de medo. Uma das coisas que mais fragiliza um ser humano é a possibilidade de se ver destituído de um cargo que lhe dá autonomia absoluta para determinar os destinos de seus subordinados. Sejam eles meia dúzia ou milhares. Aliás, é comum perder o senso de medida quando poderes minúsculos começam a ser exercidos. Olhando sem distanciamento, facilmente nos enganamos diante de homens e mulheres que descobrem o inigualável prazer de mandar. Não conseguimos perceber o grau de tensão que se esconde dentro daqueles que têm a força como a "qualidade" mais visível da personalidade. Antes de as mulheres começarem a assumir cargos de relevância, tinha-se a visão romantizada de que quando elas alçassem postos de destaque a história seria outra. Com sua sensibilidade, visão mais ampla do real, percepção dos detalhes, pensava-se que o mundo não seria mais o mesmo. A salvação, enfim encontrada. Parece que na prática isso não tem ocorrido. A ganância e a ambição despertaram a mosca azul que dormia também dentro delas. Masculino e feminino são gêneros que desaparecem no momento em que a hierarquia entra em questão. Temos exemplos bem próximos, não é preciso buscá-los em Brasília ou em outros redutos afins. Somos vulneráveis. Uma pequena plaqueta colocada na porta de entrada de nossa sala de trabalho e pronto: nada será como antes. Mas o que realmente muda dentro de nós? Por que não é possível manter o equilíbrio quando nossas forças internas são testadas? É claro que poucos afrodisíacos têm um efeito mais devastador do que o fato de nos sentirmos poderosos. Só que um dia, já o disseram, cada um de nós acaba jantando sozinho, sem a presença quase sempre comprada de quem estava ao nosso lado por obrigação, por necessidade. Alguns se dão conta disso antes do tempo, e é exatamente neste momento que o medo se instala dentro deles. Vamos pegar o exemplo mais óbvio: os políticos. Vários deles são tão ricos que não precisariam, digamos assim, trabalhar uma hora sequer de suas existências. Com polpudas e clandestinas contas no Exterior poderiam viver em eternas férias. Mas não, parece que quanto mais têm, mais precisam aumentar a sua carga. Não seria de estranhar se muitos deles adoecessem subitamente, pois é sabido que a tensão permanente, a necessidade de estar sempre lutando contra inimigos reais ou imaginários, deixa dentro de nós resíduos de veneno para sempre. Só que o medo, sempre o medo, espreita sutilmente os que ditam ordens como quem recita um poema. Ele é um tigre pronto para dar o bote. Já vi pessoas chorarem copiosamente alguns dias antes de anunciarem sua despedida desse mundo de benesses e favorecimentos. Mais parecia que estavam dando adeus a um ente amado. Porque é possível seguir tranqüilamente quando não se conheceu a prisão dourada do poder. Mas poucos têm a lucidez de abdicar dela e nem uma junta de psiquiatras pode dar conta de reestruturar a personalidade dos demais. Voltam a ser crianças desprotegidas, extremamente vulneráveis. Mas só serão novamente acessíveis quando não existir a menor chance de retornarem ao pódio. Antes que isso aconteça caminharão hirtos, com a cabeça erguida, plenos no domínio da palavra e da ação. Deslumbram-se, mas sofrem. Ainda estou para encontrar alguém que desminta esta teoria. Basta olhar para o porteiro do seu prédio. Provavelmente ele se acha tão importante quanto o presidente da República. O que conta mesmo é ser rei na própria aldeia. Uma honrosa exceção parece ser a do empresário e escritor Ricardo Semler. Autor do excelente Virando a Própria Mesa, acaba de colocar no mercado, 18 anos depois, um livro chamado Você Está Louco!, em que conta suas experiências à frente de um conglomerado de empresas com mais de cinco mil funcionários. Mas as passagens mais interessantes são aquelas em que relata seu cotidiano, principalmente quando está de férias ou meditando em sua casa. Ele escreve coisas assim: "O Parâmetro Vitruviano diz que só é possível ser feliz na proporção divina, ou seja, a altura do teto da sala tem de ser proporcional ao tamanho de uma pessoa, as refeições têm de ser distribuídas apenas de acordo com a fome, e comer folhinhas de ouro não alimenta ninguém." Só que para chegar a esse grau de compreensão, repete várias vezes, foi preciso fazer algumas visitas a um centro cardiológico para pacientes terminais e a um pequeno cemitério. A consciência de nossa finitude não precisa ser trágica. Antes, é ela que pode servir de parâmetro para avaliar o que realmente estamos fazendo e se isso é relevante para nossa felicidade. Ou constatar, com tristeza, o quanto há de sabedoria no verso de Quintana: "Há pessoas que não vivem, simplesmente fazem horas para morrer."
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