segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Beijo

Beijar
Se eu tivesse um filho, gostaria de ensinar a ele que uma das coisas mais bonitas da vida é beijar. Digo isso a propósito de algumas situações inusitadas que vivemos no dia-a-dia. Em primeiro lugar, chama a atenção o constrangimento que geralmente sentimos quando vemos duas pessoas se beijando. Se a primeira reação é ficar olhando, porque todos nós temos um pouco de voyeur, logo em seguida costumamos repudiar esse ato quando feito em público. Parece um pouco indecente, um pouco devasso. Como se a expressão do afeto viesse carregada de alguma conotação de pecado. Mais uma vez, o ranço moralista que carregamos dentro de nós, fruto de homilias e penitências tão caras às religiões, vem à tona. É difícil nos encantarmos, sem que nenhum desconforto se manifeste em nós, nos momentos em que a carícia substitui a indiferença, ou até mesmo a violência, fora do âmbito estritamente privado. Na infância, quando o mundo se apresenta como um campo infinito de possibilidades a serem exploradas, os pais costumam cobrir os filhos de afagos, tocando não só o seu rosto, mas o corpo inteiro. É tudo macio, fofo, absolutamente tentador. Esses agrados costumam ser permitidos também às pessoas mais próximas das crianças, enquanto os progenitores salivam diante dos encantos de seus rebentos. Quem dera fosse assim por toda a vida. Mas logo, logo, a gente começa a colocar cercas. Até aqui pode. Mas só até aqui. Nem pensar em ultrapassar os limites impostos pelo decoro. Não demora muito tempo e começamos a acreditar que há algo errado com quem não se contenta em usar a linguagem como a melhor expressão do que está sentindo. Aí acaba ficando tudo meio triste, sem graça. Bem rápido começamos a nos retrair e lá vamos nós para os consultórios dos terapeutas em busca desse elo perdido. Mas os adolescentes estão tão liberais, podemos pensar. Sim, é claro, só que o tipo de liberdade que conquistaram está estritamente relacionado à libido. Beijar dez pessoas na boca numa única noite é como não beijar nenhuma. O contraponto é que eles morrem de vergonha quando pais e mães se aproximam com intenções amorosas. É como se eles vivessem uma espécie de holocausto da pele. Entre os seus pares tudo é permitido. Mas somente entre eles. Eu sonho com um tempo em que homens e mulheres possam existir sem tantas amarras, conscientes de que a felicidade pode ser algo orgânico, relacionada aos sentidos, à percepção do prazer que o corpo, quando a mente está sadia, costuma nos dar. Não acredito estar clamando por Sodomas e Gomorras modernas. Pelo contrário. A anomalia está no celibato, no falso pudor, na contenção dessas explosões hormonais que nos acompanham vida afora. Beijar e acariciar é sempre bom, tenhamos nós vinte ou oitenta anos. Só que são inúmeras as conspirações sociais para que isso não aconteça. Há ainda muita repressão, muita fome para ser saciada. Quando não podemos extravasar o que sentimos, acabamos jogando todas essas pulsões no trabalho, como se ele pudesse resolver as nossas carências, a necessidade de sentir o calor de um outro ser. Talvez seja por isso que costumamos nos sentir atraídos toda vez que testemunhamos um acidente ou uma briga na rua. Melhor se deleitar com a infelicidade alheia do que ficar espiando o que os outros fazem e que nós gostaríamos tanto de fazer. Mas não temos coragem. Imagine um jornal que tivesse na capa a foto de um casal se beijando numa praça. Ou de vários casais. Será que venderia tanto quanto aquele que se rende a tragédias e assassinatos? Desconfio que a edição ficaria quase toda encalhada. Não ignoro a violência que assola o nosso cotidiano. Vivemos sob a égide do medo, da insegurança. De certa forma, nos sentimos esmagados por essa questão. Mas é bom pensar que isso não pode inibir um saudável despudor, não economizando nunca os contatos e os beijos. Em casa, no trabalho, nas ruas. Assim como quem caminha distraído e de repente se dá conta de que a morte é a impossibilidade definitiva de tocar o outro, fazendo assim com que desapareça em nós toda reserva, toda contenção. Se eu pudesse legislar sobre as datas comemorativas que constam em nosso calendário excluiria uma série delas, que me parecem meio absurdas. Mas instituiria um feriado mundial para homenagear o beijo. Com prêmios para todos aqueles que chegassem ao fim do dia aptos para uma nova maratona.

Nenhum comentário: