Público, privado e outras coisinhas
Estou em uma das salas de cinema do Arteplex, em Porto Alegre. Concentradíssimo no filme, mal percebo o que acontece ao meu lado. Súbito, sinto um movimento, a menos de cinqüenta centímetros do meu rosto, de inquietos dedos femininos. Olho e mal consigo acreditar. A jovem que está sentada na cadeira contígua à minha havia descalçado os sapatos e, sem cerimônia alguma, colocou os pés displicentemente sobre o espaldar da fileira à frente. Pronto, penso, agora ela vai vestir o penhoar e as pantufas, porque tem certeza de que está na sua casa. Irado, dou-lhe o tempo de dez segundos para se recompor e agir como um ser humano razoavelmente bem-educado. Ela me olha, quase sem entender e, com uma calma de fazer inveja a um monge, começa a executar o que lhe pedi. E tudo prossegue como se nada tivesse acontecido. Exceto pela taquicardia que tomou conta de mim durante esse tempo. E haja concentração depois disso.
Não é possível, penso, que continuemos a nos comportar de tal forma em espaços públicos. Afinal, não estamos encerrados em nosso quarto, sozinhos, prontos para usufruir do máximo de liberdade que nos é possível. Onde está o outro, nesta história toda? Em que momento deixamos de percebê-lo? Situações como a descrita acima tornaram-se corriqueiras, banais, a tal ponto de quase não nos chocarmos quando pessoas as praticam sem a menor cerimônia. Tudo parece ser permitido quando o individualismo extremado rege as ações.
Meia hora depois de terminada a projeção do filme, sentado num café, percebo que as pessoas estão falando cada vez mais alto. É uma algaravia infernal. Penso até que algum fato extraordinário possa ter motivado tamanha empolgação. Engano. Sou informado de que fulano se submeteu a uma cirurgia de varizes, sicrano viajou para Dubai e, "nossa, você já leu o último livro do Augusto Cury? Está maravilhoso." Tudo isso em menos de cinco minutos e à minha revelia. Emoção boa é emoção gritada, escancarada, jogada na cara do ouvinte como uma bofetada. Afetiva, mas mesmo assim uma bofetada. A vida se tornou uma colcha de retalhos, todos da mesma cor, tem razão quem disse isso. Não foi só a moda que padronizou o ser humano. Estamos agindo como macaquinhos treinados para agradar a um público que nos presenteia com balas no final do espetáculo. O importante é nos fazermos notar. Nem que para isso tenhamos que tentar transformar a nossa vida doméstica, que geralmente tem o mais banal dos enredos, numa história mirabolante e sedutora.
Emoção em seu limite máximo. Sentir aos poucos, devagarinho, sem pressa, quem ainda se predispõe a isso? É preciso ocupar o primeiro lugar da fila, pois logo atrás tem gente interessada em fazer o mesmo. Competimos compulsivamente, num exercício insano de auto-superação. Saudável, quando for uma proposta de ultrapassar os limites, mas quase beirando à demência toda vez que não nos damos conta da armadilha na qual estamos entrando. Toda e qualquer experiência pessoal pode virar de um momento para o outro enredo de filme ou de livro. Banalizamos de tal forma a arte (e a existência) que já não temos mais parâmetros para separar a confissão do trabalho criativo, propriamente dito. Tudo pode ser vendido, e bem, desde que uma boa divulgação nos faça crer que vale a pena consumir isso ou aquilo.
Ainda sonho com o dia em que alguém, ao me contar um segredo, enrubesça levemente. Parece-me muito poética a idéia de encontrar uma criatura com algum pudor, alguma reserva ao relatar fatos de sua vida pessoal. Mas, por enquanto, o que se vê é um desfile sem fim de vaidades, uma exposição desmesurada, onde o exibicionismo parece ser o único deus a ser reverenciado. A conseqüência natural disso é que estamos sempre em busca de uma vitrine. Exemplo: há poucas semanas, quatro diferentes revistas, dessas especializadas em devassar a intimidade das celebridades momentâneas, estamparam em suas capas a mesma foto, do mesmo casamento, sob o mesmo ângulo. Daqui a alguns meses, se tanto, elas usarão o mesmo espaço para noticiar a separação do famoso casal. Aproveitar o momento, a oportunidade, virou um mote que todos seguem bovinamente.
Discrição. Poucos ainda se lembram do significado dessa palavra. Caso contrário, ninguém ousaria colocar os pés descalços em cima da cadeira à sua frente. E falaríamos mais baixo e teríamos vergonha. Essa vergonha saudável que nos impede de sair por aí agarrando o primeiro que se dispuser a nos emprestar seu ouvido. Paradoxo: precisamos ser vistos, mas não vemos mais ninguém. As portas todas se abriram. Caminhamos, apopléticos, em busca de um lugar ao sol. Mesmo que este sol ofusque e deforme todas as fisionomias. Principalmente a nossa.
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