sábado, 8 de outubro de 2011

A ilusão do controle


Quem mais trai é quem é mais vigiado, pessoas livres não costumam fazer isso

Ninguém controla ninguém. Ninguém controla nada. A vida, com suas fragilidades, vai traçando itinerários próprios, à revelia de nossa vontade. Mas gostamos de acreditar que estamos no centro do palco, manipulando outras marionetes, como deuses convictos de seu poder. É assim com os pais em relação aos filhos, com os namorados e também entre amigos. Lutamos incessantemente para provar a nós mesmos uma força que, no fim de tudo, mais nos debilita que fortalece. Para alguns, a passagem dos anos só reforça esse engano, o que os faz se agarrarem cada vez mais a essa ilusão.

Quando descobri isso e comecei a colocar em prática o que tantas vezes li em livros de ensinamentos budistas, tudo em mim e ao meu redor ficou mais sereno. É interessante perceber como os nossos preconceitos (que gostamos de chamar de ideias próprias) formam círculos concêntricos, abarcando os que estão ao redor. É uma espécie de contaminação sutil que torna tudo meio morno, de tons pálidos. Um engano coletivo: cegos guiando cegos, rumo ao desfiladeiro.

O que precisamos fazer? Diminuir a tensão, deixar que as pessoas sigam livres, buscando o que as torna felizes. Toda vez que não conseguimos colocar isso em prática, fazemos com que dois seres fiquem presos, um em cada ponta. Tanto sofre o que é vítima desse tipo de opressão, quanto o que oprime. Porque não há pior prisão do que passar vinte e quatro horas por dia monitorando os atos e mesmo a fala de alguém. E, no entanto, há os que parecem apreciar esse comportamento. Tenho uma amiga que escolhe seus namorados pelo grau de ciúmes que sentem. Se não perceber neles nenhum indício de cão farejador, seu interessa cai para zero. Nem é preciso dizer que ela passa seu tempo investigando tudo o que acontece com o escolhido. Fico imaginando o estado de alerta em que deve viver. Não é por nada que usa uma placa dentária para minimizar o atrito entre seus dentes, quando está dormindo. Difícil mesmo é encontrar um aparelho que se acople ao seu pensamento, diminuindo os estragos que essa postura provoca.

Não existe liberdade maior do que deixar que cada um siga a sua história, sem a nossa gananciosa interferência. Já dá um trabalho danado ficar olhando para si mesmo em busca do que há de melhor e mereça ser fixado. Imagine ter de carregar o peso de um estranho, de alguém que tenta se desamarrar a todo custo, mesmo percebendo a força que fazemos para apertar cada vez mais o nó. Tudo fica mais leve quando nos damos conta que esse policiamento é inútil.

E por que isso? Por uma simples lei da física: quanto maior a tensão, maior o impacto. Quanto maior a pressão, maior a vontade de roer a corda, nem que seja a custa desse amor. Estatisticamente, quem mais trai é quem é mais vigiado. Pessoas livres não costumam fazer isso. E nem precisam, porque essa decisão implica sempre numa escolha pessoal. É exatamente aqui que reside o verdadeiro poder que se tem sobre o outro: o de deixá-lo partir na hora em que ele quiser. Ao perceber isso, não raro ganhamos a certeza do quanto somos importantes para o outro. Esse outro que descobriu em nós uma paisagem para ser ele mesmo.

Aprisione e você perderá. O processo de domesticação afetiva, tão cara aos que pretendem apropriar-se do amor, costuma apresentar resultados trágicos. Podemos obter tudo, menos a admiração, sentimento que deveria ser colocado no Panteão dos relacionamentos. Poucos admitem, mas quem se entrega a essas práticas o faz por pura insegurança, por acreditar pouco em si mesmo. Quem tem consciência de seu próprio valor não perde tempo preparando armadilhas e muito menos fantasiando possíveis traições. Os que querem aprontar não se intimidam com barreiras, com empecilhos. Que muitas vezes até servem como reforço para transgredir.

Portanto, relaxe. Não tente invadir um continente desconhecido. O surpreendido poderá ser você.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

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O teu riso



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

Quase Sem Querer

Quase Sem Querer

Legião Urbana

Composição: Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Renato Rocha

Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso,
Só que agora é diferente:
Sou tão tranqüilo e tão contente.

Quantas chances desperdicei,
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.

Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira,
Mas não sou mais
Tão criança a ponto de saber tudo.

Já não me preocupo se eu não sei por que.
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.

Tão correto e tão bonito;
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos!
Sei que, às vezes, uso
Palavras repetidas,
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?

Me disseram que você
Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como lhe quero tanto.

Já não me preocupo se eu não sei por que.
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

SIMPLES


Ando apaixonado por gente, sou uma espécie de filósofo feliz em busca do humano

Minha prece, ao deitar, passou a ser esta: que o dia de amanhã me surpreenda mais lúcido, mais leve, mais atento. E que eu possa, principalmente, ir me libertando das inúmeras prisões que fui forjando ao longo da vida. Para tanto, valho-me da palavra e do silêncio, da observação acurada e do gesto que alcança o outro, sem me esmagar. Somos todos devedores, e a compreensão dessa verdade elementar pode nos conduzir à prática de ações mais virtuosas, proposição tão cara aos antigos gregos.

Foi dito por Sócrates: “Seja um lâmpada para você mesmo.” A lenta arquitetura que vamos construindo com o nosso nome não se faz com distrações, com um deixar passar, como se a maturidade vestisse somente a soma das horas vividas. Há seres que morrem mais ignorantes do que nasceram, pois além de recusar as aprendizagens, perderam o sentido essencial da inocência. Deixaram suas almas se estragar junto com seus corpos, numa conivência tácita com o fim de tudo. Não me alinho aos que aceitam facilmente as perdas. Sei que é uma arte difícil e que assimilá-las é muito árduo. Mas minhas mãos já não estão crispadas, recusando o gesto que liberta e nos devolve ao novo.

Ao me aproximar dos 45 anos, traço um novo itinerário. Algumas decisões de ordem concreta têm facilitado significativamente a chegada dessa idade, quando é quase um dever refletir sobre si mesmo. Três vezes por semana faço longas caminhadas com uma amiga. Encontro também a possibilidade de traduzir emoções que estavam somente rascunhadas, como se me faltasse coragem de jogar luz sobre elas. O olhar não comprometido com a ação pode ser a melhor bússola. Como nos disse o filósofo Frédéric Gros, a caminhada nos livra das ilusões do indispensável. E não é só o corpo que se põe em movimento. Andamos com as pernas e com a cabeça, numa espécie de competição feliz, quase uma redenção para dias tão carregados. Durante uma hora e meia criamos nosso próprio país, com o mínimo de regras e o máximo de liberdade que os condicionamentos nos permitem. Fazemos confissões recíprocas, provocando um no outro o compromisso da fidelidade.

Já há alguns meses, também, tenho observado com atenção redobrada a minha alimentação. Sem reduzir o prazer desse ato que tantas vezes compete com a libido, já não me interessam mais os açúcares e as gorduras. Faço declarações de amor à vida e a mim mesmo ao diminuir o consumo de carne, ao beber mais sucos, ao ingerir fibras, frutas e verduras. É só através da prática que descobrimos que atitudes assim alteram não só o nosso organismo. Toda uma percepção do existir fica embotada ao nos empanturrarmos com tanta comida artificial. Não lembro de outra época em que me senti tão confortável, numa relação plena com meu corpo. É uma decisão que muitas vezes nos põe em confronto com pessoas próximas, que sequer se permitem questionar os excessos que cometem. Mas é, também, uma educação para os sentidos, na medida em que um organismo livre de tantas drogas legalizadas começa a perceber com mais clareza tudo o que gravita ao seu redor.

Nessa busca por um estado de maior consciência, mesclo as tantas horas de leitura diária – grande prazer para o espírito – com a ampliação dos encontros, com a multiplicação dos abraços. Ando apaixonado por gente, sou uma espécie de filósofo feliz em busca do humano, de suas vicissitudes, carências, acolhimentos. Reaprendo a magnífica arte da conversação, do diálogo que exige perseverança e respeito não só pelo que difere, mas também pela sobreposição das igualdades. Estamos tão encharcados de ego que normalmente não sobra tempo e nem disposição para ver, simplesmente ver.

Não sonho voltar no tempo e muito menos espiar o que me espera lá adiante. Gosto do movimento, mas aprendi a encurtar as expectativas. Namoro o presente com olhar inebriado. Tudo ficou mais simples, parecido com o vento. Continuo também lendo poesia, fazendo meditação, acordando cedo, rezando para o meu anjo da guarda, tendo muitas dúvidas. E rindo, rindo muito.

domingo, 5 de junho de 2011

NUNCA é tudo

Não sonhar sempre com o pódio nos relaxa e faz descobrir a grandeza das vidas comuns

É provável que nossa época seja lembrada como a que buscou a perfeição em quase todos os campos da atividade humana. Há um esforço extremado para se conseguir a excelência, esquecendo que precisamos conviver com a falha, a fissura, o incompleto. A consequência natural dessa atitude é a frustração, pois, em termos concretos, quase nunca alcançamos o limite estipulado em nossa mente.

Tenho visto relacionamentos saudáveis se desmanchando só porque, num dado momento, numa circunstância específica, uma das pessoas envolvidas não conseguiu atingir as expectativas sonhadas pelo outro. Diante da primeira decepção, passou a ser imperativa a necessidade de romper e partir para a próxima. Conselheiros profissionais de última hora invadem as colunas de jornais e revistas para nos dizer que só os fracos persistem em algo quando vislumbram sinais de desgaste. É preciso seguir em frente, sempre em frente. Considero essa decisão precipitada, quase infantil.

Alinho-me mais à ideia de que é necessário continuar investindo nas pessoas, no trabalho, nos prazeres, à revelia de alguns sentimentos de desconforto que possam surgir. O que estamos querendo, uma reedição do paraíso, aqui e agora? Só a possibilidade de se debruçar mais longamente sobre o que nos pertence, seja na esfera emocional, seja na profissional, faz com que um projeto de vida mais maduro se torne possível. Difícil se conformar com a premissa de que o absoluto pertence aos deuses, não aos homens. Negando isso, só nos resta o consolo de ir experimentando aleatoriamente, sem nos fixar em nada.

Tem me incomodado, ultimamente, a constatação de que estamos investindo cada vez menos no duradouro, naquilo que aspira ao eterno, mesmo sendo provisório. Pobre daquele que não idealiza ser o primeiro, o que se destaca, merecedor de que os holofotes incidam sobre ele. A verdade é que não há lugar para tantos gênios no mundo. Gênios da computação, do amor, da amizade, da medicina. Quase todos, quando nos esforçamos, acabamos ficando na média. Nem num extremo, nem no outro. E muitas vezes nos surpreendemos cansados, querendo repouso, longe do esforço exigido para alcançar tanto superávit na esfera das relações.

Vemos surgir cada vez mais na mídia especialistas, homens e mulheres que derramam sobre nós conselhos simplórios e oportunistas, quando não irreais. Você pode, você precisa ser tudo, nos dizem a cada aparição. Coitados de nós, tão distantes desse ideal. O resultado dessa dissonância? Um sentimento de total inadequação com o que nos cerca. A vontade renovada de imitar os vencedores. Tão poucos, esses, que tantas vezes vivem subterraneamente um sem número de tristezas por ter de vender essa fisionomia feliz, contente, longe da realidade nossa de cada dia.

Interessam-me particularmente os enredos que não estão destinados a ser tornar obras-primas. Gosto de quem se parece com essas brochuras que encontramos nos sebos, manchadas, gastas pelo uso – prenhes de humanidade, no entanto. Não me sinto mais seduzido pelo novo, pelo impecável. Isso já não faz parte do meu repertório. Quero reconhecer-me também no erro, nas tentativas que muitas vezes ficaram aquém do que eu pretendia.

Não faço aqui a apologia do fracasso. Pretendo apenas tirar das costas o peso de um compromisso quase sempre impossível de cumprir. Flertar com a modéstia pode ser um bom exercício para descobrir o grau absurdo de exigências que recaem cada vez mais sobre nós. Não sonhar sempre com o pódio nos relaxa e faz descobrir a grandeza das vidas comuns. A minha e a sua.

domingo, 29 de maio de 2011

Ninguém vê a si mesmo

Por maior que seja o esforço, o resultado será quase sempre nulo. Não conheci até hoje ninguém (estou incluso na estatística) que conseguisse ver a si mesmo com isenção, com equanimidade. Estamos tão comprometidos em passar uma imagem que se aproxime da perfeição que nada é capaz de destruir essa trapaça mental que costumamos fazer. Mesmo que defeitos se sobressaiam gritantemente em relação às qualidades, serão estas últimas a ocupar um lugar de destaque no nosso diálogo com o outro.

Isso levanta uma questão crucial em relação à terapia. O que comumente apresentamos ao profissional que se dedica a nos ouvir atentamente é só uma versão do que somos. A nossa versão. Não necessariamente a realidade, o que de fato é. Em muitos casos, esse desfocamento é que nos permite seguir em frente, mantendo a uma certa distância a depressão. Como não há ninguém para confrontar o que dizemos, fica o dito pelo não dito e o resultado de muitos tratamentos costuma ser desastroso. O que tenho visto em amigos “analisados” é uma grande confusão entre ser autêntico, dizer a verdade e a construção falsa e arrogante de um eu que se coloca sempre em primeiro lugar.

É raro encontrar alguém que tenha a coragem de se expor e expor o que descobre de pior dentro de si. Humano, compreensível. Mas chega uma hora na vida em que não dá mais para fazer de conta que somos a criação suprema da natureza. E vai aqui uma crítica suplementar a algo que vejo cada vez mais em quem passa uma ou duas horas nos consultórios: alguns profissionais têm se especializado em recalcar essas áreas sombrias de seus pacientes, ao invés de jogar luz sobre elas e tentar entender o porquê de determinadas atitudes. Chama-se a isso reforçar a auto-estima? Não sei, mas valorizar posturas autoritárias, por exemplo, não costuma nos melhorar em absolutamente nada. O que percebo é que eles acabam fornecendo os argumentos que precisamos para justificar nossa arrogância e prepotência.

De minha parte, tenho tentado, dia após dia, me desarmar e chegar sem escudos aos seres com que convivo. É certo que o resultado nem sempre é o desejado, mas a tentativa de reconhecer o que em mim é falho, as minhas obsessões, os demônios que me habitam, talvez mereça algum crédito. Provavelmente essa busca seja o resultado do meu cansaço em ver tantas pessoas placidamente sentadas em seu trono particular, com total desconsideração pelos desejos dos que os cercam. Quase sempre com a boca repleta de frases que fariam um ditador viciado em poder sentir-se aprendiz.

Não é fácil se despir desses auto-enganos que vamos laboriosamente alimentando ao longo da vida. Com isso não busco negar a importância da construção de uma boa imagem. Mas ela tem que ter pelo menos uma razoável relação com o que de fato somos. Caso contrário, morreremos com a falsa crença de que quem tem que mudar é a esposa, o filho, o vizinho, o colega. Uma pequena dose de honestidade é vital para desembaçar o vidro que colocamos entre nós e nós mesmos.

Vou persistir nessa interminável tarefa de trapacear um pouco menos comigo. Em algum momento terei que me confrontar. Postergar esse desafio não me parece uma atitude inteligente. Pretendo recorrer a quem seja necessário para que isso aconteça. Mas sempre com muita desconfiança nos resultados. Somos mestres em disfarces. A segunda resolução é que desisti de tentar fazer o jogo do convencimento, essa tentativa de mudar quem está próximo. Pura perda de tempo. São decisões estritamente pessoais e que não podem ser forçadas por uma mão alheia, por mais leve que ela seja.

Eu sou o que menos sabe de mim. Sou meu maior desconhecido. Preciso de todos para retirar essa espessa camada que me impede de ver o óbvio. O difícil óbvio que muitas vezes embaralha o que deveria nascer encharcado de sinceridade. Se me furtar a isso, estarei cometendo a maior das traições, talvez a única que mereça este nome.

sábado, 30 de abril de 2011

Amor `FATI´


Apego-me como um náufrago a cada vislumbre de alegria

Amar o seu destino, amar o que existe em você. Nesta perfeita expressão que encontramos na obra de Nietzsche está circunscrito todo um itinerário de desenvolvimento do nosso ser. Isso me remete as tantas inquietações que nos assolam, aos desejos diversos que não coincidem com o que somos, com o que fazemos. Essa desordem interior – um desassossego à maneira de Fernando Pessoa – faz com que nos descuidemos do real, do que está desenhado na borda de cada dia.

No descontentamento que se vê nos olhos de muitos é provável que esteja presente uma incapacidade para se adequar ao real. Como se o que estivesse acontecendo ao nosso redor fosse sempre mais interessante. Só que os que estão próximos não raro olham para nós com a mesma inveja. E assim, querendo ser tudo, menos o que somos, acabamos por perder a substância que nutre a nossa vida. Que muitas vezes guarda a aspereza dos limões. Que dói e machuca e deixa em nós uma vontade de alheamento. Mas que passa, passa. A felicidade não pode ser apenas um breve intervalo em meio a toda essa fúria que estilhaça a alma.

Quero que minhas crenças sejam de outra ordem. Não recuso o percalço, a doença, a fragilidade. Mas me apego como um náufrago a cada vislumbre de alegria. Não à comemoração ritualista, essa que vem carregada de obrigações, de datas previamente agendadas. O que em mim é motivo de festa pertence ao pequeno, ao acidental. Se há um destino, um fado que seguimos até o esgotamento, eu desconheço. Cada vez mais creio no mistério do acaso. Por isso traço para mim uma rota que vai sendo alterada constantemente. Porque sei que sou o resultado feliz ou amargo de um encontro, um acidente de percurso, uma gratificação que nasce simplesmente por estar em disponibilidade.

Amor fati. Amor ao que é concreto, tangível. Sou uma esfera de possibilidades, paisagem do que fui, esboço futuro do que serei. Tenho sede de tudo que é palpável, mesmo que a imaginação, aqui, também tenha um papel importante. Não sonho com o destino do outro. Já estou na idade em que preciso me conformar com minha própria fisionomia. Sem mágoas, sem ressentimentos. Perdi e ganhei. Os que se aproximam de mim e os que partem rapidamente nada mais fazem do que continuar a esboçar um pouco mais da minha personalidade. Tudo isso parece ser uma brincadeira. Por vezes terrível, por vezes adorável.

Tenho esse frêmito que quer mais e mais vida. Gosto da filosofia porque ela me expande, mostrando não o que sou, mas o que ignoro. Tento fugir cada vez mais das conclusões. É tão perigoso acreditar que se saiba sempre as respostas. Melhor ir dando as mãos a quem está do nosso lado, ir tateando. Juntando pedaços que talvez algum dia possam nos dizer se há um significado, um sentido para esse aparente caos. A madureza cobra seu preço, mas também nos dá a percepção de tudo o que se desmancha sem que a gente perceba.

Eu quero mais tempo. Mas não um tempo rugoso, que me deixe ressentido. Busco a coragem para rever algumas lições. Sei que não conseguirei me graduar. Mas tenho a fome necessária para continuar abrindo todos os cadernos.

terça-feira, 26 de abril de 2011

E ainda sobra tempo


Sentimo-nos valorizados cada vez mais pela ação

Existe uma equação simples para tentar decifrar esse grande mistério da falta de tempo na vida das pessoas. É só parar e fazer a conta das horas desperdiçadas em atividades completamente inúteis. A relação é tão vasta que nem vale a pena fazê-la. Mas pode-se tentar uma tomada de consciência a partir de acontecimentos do nosso cotidiano. Você conhece uma situação que nos deixa com mais culpa do que não fazer nada? O corpo pode até estar em estado de repouso, mas a mente viaja quilômetros e mais quilômetros, sofrendo por tudo que deveria estar fazendo e não faz. Provavelmente seja por isso que muitos de nós damos um jeitinho de levar o notebook para a praia ou o hotel da cidade em que vai tirar férias. O ócio passou a ser o oitavo pecado capital dos nossos dias. Em gravidade, deve estar entre os primeiros.

Sentimo-nos cada vez mais valorizados pela ação. Empilhamos atividade sobre atividade e, ao fim do dia, a descoberta do não cumprimento de uma meta causa grande sofrimento. Contemplar tornou-se obsoleto, coisa de quem tem alma de poeta. Poeta extraviado. As estações passam por nós como se fossem todas da mesma cor, da mesma textura. É claro que muitos se entregam a essa compulsão porque há uma cobrança permanente pairando no ar. Só os melhores, os mais ágeis e espertos sobrevivem no mercado. E isso acabou virando senso comum – multidões andando por aí em busca do que fazer.

Já há alguns anos tenho adotado um olhar diferente. Tento cortar tudo o que posso e reduzir a vida a certos núcleos que me parecem vitais. Todos reclamam que não sobra uma mísera hora diária para a leitura. Mas sobram três ou quatro para assistir televisão. Os pais reclamam que os filhos quase nunca estão em casa. Mas eles muitas vezes passam mais tempo diante do computador do que os filhos. Namorados trocaram a intimidade física por mensagens online. Um breve monitoramento para saber onde estão parece dar conta de qualquer insatisfação amorosa. E todos convencidos de que é assim mesmo e não há nada o que se fazer. Mas há, sempre há.

O desejo exagerado de obter sucesso nos enredou de tal modo que acabamos aceitando tudo como natural. E com justificativas racionais e fundamentadas. Recusar passou a ser uma falta de educação que poucos se permitem. Participam de tudo, mesmo estando presentes só fisicamente, loucos para voltar pra casa e se livrar do evento chato. Está aí uma expressão que não sai da nossa boca: “Eu não queria ir, mas era um compromisso irrecusável.” E vamos, totalmente sem vontade, cumprir mais um ritual destituído de prazer.

Tenho recuperado umas boas horas depois que aprendi a dizer não. Existem parcerias, existem amizades e existem necessidades profissionais e afetivas. Tudo certo. Mas esse excesso de cuidado para não magoar ninguém está nos transformando em seres amargurados, queixosos. Lembremos do verso de Rimbaud: “Por delicadeza, eu perdi minha vida.”

Consigo fazer muitas coisas e ainda sobra tempo. Resultado de algumas escolhas conscientes. Um exemplo? Na minha casa ninguém leva trabalho que ficou pendente durante o dia. Com a TV quase sempre desligada, conversamos, lemos, assistimos filmes, saímos para jantar. Ou simplesmente ficamos preguiçosamente deitados no sofá, falando ou em silêncio. Isso se tornou tão importante que já não questionamos mais se é certo ou errado. É simplesmente a nossa maneira de ser feliz. E de reclamar menos.

Daqui a pouco teremos que devolver tudo, como nos ensinam os mestres budistas. Melhor pensar na vida como uma brincadeira. E se divertir. Estamos ficando velhos muito cedo. E sérios. E responsáveis. E resmungões.

Estou tentando diminuir o peso das malas que carrego. Não quero perder meu trem para Pasárgada. Sem poesia já é noite. Corremos o risco de morrer sem descobrir que a luz era a própria paisagem.

sábado, 9 de abril de 2011

DESEJOS atendidos


Sonho satisfeito, frustração à vista

Volta e meia ponho-me a pensar nesta frase do escritor Oscar Wilde: “Só existem duas tragédias na vida de um homem: a primeira é não conseguir o que ele mais deseja; a segunda é conseguir.” Por que isso é tão recorrente? Quando realizamos um projeto, muitas vezes precedido de grande expectativa, logo, logo, derrapamos na melancolia. É como se um dique tivesse estourado e não conseguíssemos mais represar a água que tudo inunda. Como se o tamanho do nosso sonho não coubesse mais dentro da vida real. E isso não se constitui numa exceção ou numa espécie de vício de almas desocupadas. Ao contrário, esse sentimento de inadequação entre o desejo e a sua realização assola até as pessoas mais pragmáticas. Essas que depois do primeiro gole do café da manhã saem para a ação, numa renovada tentativa de mudar a composição do mundo.

Difícil entender por que somos assim. Vejo essa atitude em quem tem fé e em ateus, em gênios e em pessoas simples, em crianças e em velhos, em tristes e em felizes com a vida. Sonho satisfeito, frustração à vista. Constato isso até nos casais que antes juravam amor eterno pelos cantos da casa. Observo também no homem que empenhou a vida para ter em sua cama o corpo da mulher que desejava ardentemente. E no empresário casmurro que por tanto tempo empilhou dinheiro no cofre, escondendo-o com zelo. Quando não fica um resíduo, uma ponta do não realizado, é sempre a mesma tragédia. E o sussurro discreto que chega aos ouvidos mais atentos: “Então, foi pra isso que eu lutei tanto?”

É na esperança que firmamos nossos propósitos, mas como uma espécie de carta que lançamos ao mar na secreta expectativa de que ela jamais seja encontrada. O fato de escrevê-la já contém a resposta. Às vezes parecemos aquele menino mimado que atazana a vida dos pais para ter o mesmo brinquedo do colega de aula. Esse brinquedo que se tornará irrelevante assim que estiver em suas mãos. O mais bonito é sempre o inalcançado. Amorosa espera que regula o ritmo do coração e o põe em disparada. Eterna busca pelo doce trancado na vitrine da confeitaria.

Uma pista para entender isso. Quando obtemos algo, quase imediatamente passamos a descuidar do que antes nos dava a sensação de ser tudo o que precisávamos. Deixamos lá, atirado num canto, esquecido como uma vassoura de cerdas gastas. Amores terminam assim, amizades idem. Como admirar o que está (e pensamos, erradamente, sempre estará) ao alcance de nossas mãos? Quando a morte interrompe essa pretensão tão humana, saímos pelas ruas ganindo como um cão açoitado pelo passante insensível. Perder, ganhar, saber como tudo é frágil. Consciência relâmpago que não apaga o nosso andar rumo a tantas insatisfações. Talvez seja bom pensar um pouco antes de pedir algo. Os deuses, desejosos de se divertir com nossa trôpega ansiedade, podem nos conceder o que mais queremos.

Portanto, reflita duas vezes antes de percorrer as contas do seu rosário particular. Não peça só para alcançar, mas a renovação do desejo também. Não nos dizem os especialistas que a depressão costuma ser quase sempre a falta de vontade em continuar querendo, a paralisia diante do espetáculo do mundo? Olhar, olhar e se sentir imensamente enfastiado, com o rosto virado para o lado, afundando-o no travesseiro – tal é a nossa condição no mais das vezes.

São de Santa Teresa essas lúcidas palavras: “Mais lágrimas são derramadas por súplicas atendidas do que pelas não atendidas.”

Suplique menos, portanto. Alguém pode ouvir e atendê-lo.

domingo, 13 de março de 2011

Exibidos

A maioria de nós não quer mais ver, quer apenas ser visto

Conheço pessoas que envelheceram cedo, muito cedo. Olham para tudo com melancolia e saudade. Sonham com um tempo que nunca existiu, mas que, na sua fantasia, era perfeito. Suspiram em busca de uma infância e uma juventude perdidas. É seu Éden imaginário. Lá, acreditam, ficaram ancoradas as melhores paisagens de sua existência. E quando alguém aponta uma novidade, não querem nem saber do que se trata. Pensam que o melhor do mundo já ficou para trás.

É uma tentativa de reter lembranças que parecem mofar nas gavetas da memória. Mas é, também, uma recusa em perceber o movimento que gera a vida. Há 100, 200 anos, outros sentiram isso como nós, vislumbrando o esfacelamento de tudo que sustentava sua maneira de ver a realidade mais imediata. E assim acontecerá num futuro próximo e distante. É da natureza humana aparentar-se da insatisfação.

Tenho me esforçado consideravelmente para não parecer pai ou avô de mim mesmo. Sou muito crítico, o que dificulta um pouco a aceitação tácita do que o senso comum considera como as maravilhas da época em que vivemos. Computadores, por exemplo. São instrumentos utilíssimos, que facilitam o trabalho e aproximam mais as pessoas. Mas sigo viciado em abraços, olhares e sensações. Continuo analógico em grande parte do meu dia. Porém, quando recebo e-mails, respondo-os num curto espaço de tempo. Quem os envia fica nessa expectativa e não é simpático provocar frustração nos outros. Só que faço isso sem afobação, sem desespero. Por enquanto, meu maior desafio no universo virtual é o de escrever diariamente num blog. E acho admirável quem se dedica a outras formas de comunicação on-line. Desde que estabeleça limites e não ultrapasse a lógica do razoável.

Essa prédica toda é para chegar a um ponto que considero patológico. Estou cercado de colegas, parentes, vizinhos e desconhecidos que têm Orkut, Facebook, Twitter. Eles parecem se divertir muito com isso e não sou eu quem vai dizer que estão errados. Mas um fato preocupante tem me chamado atenção. Ilustro com uma situação recente: um casal de amigos viajou para Nova York. Assim que desembarcaram do avião, começaram a postar mensagens para que todos soubessem o que estavam vendo, fazendo, visitando, comendo. Estas informações chegavam aos correios eletrônicos a cada 20 minutos, meia hora, no máximo. Do início da manhã até o “boa noite, estamos indo dormir”. Verdade. Não passou um dia sem que o atarefado casal descrevesse em minúcias tudo o que passava pela sua frente. A conclusão óbvia é que aproveitaram pouquíssimo o passeio dos seus sonhos. Não queriam ver, queriam ser vistos, seja em palavras ou em fotos. É claro que depois do terceiro ou quarto dia ninguém estava mais interessado em suas aventuras. O detalhe importante é que eles estão loucamente apaixonados. Quando entre nós, passavam o tempo todo arrulhando, o que nos fazia lembrar esse adorável verso do Quintana: “Não existe nada mais chato no mundo do que o amor... dos outros”.

Conclusão: estamos nos transformando em Narcisos com endereço incerto. Só conseguimos ver a nós mesmos e achamos que todos estão sinceramente interessados em saber o que fazemos a cada segundo de nossa nem sempre interessante vida. Desde a roupa que estamos usando até o que jantamos. Sem entrar em outros detalhes que poderiam parecer escatológicos às almas sensíveis. Tem alguma importância dividir isso? Ajudem-me a entender, porque eu não consigo. Será que corro o risco de ser um sério candidato ao mais velho da turma?

O certo é que a banalidade (quase digo a vulgaridade) se transformou numa espécie de moeda universalmente aceita. Tudo virou platitude, carne de segunda servida em louça Limoges. Que venha o novo para arejar a vida. Sempre, sempre. Mas seria de bom tom se o pudor, algumas vezes, ainda enrubescesse a nossa face.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Eu Queria!

Eu Queria!


Queria tanto estar junto a ti, poder tocar-te a pele macia,
sentir o calor de teus braços, os meus aos teus envolvendo,
acariciar-te a nuca, sussurrar em teus ouvidos, oh agonia,
palavras não descrevem, tudo aquilo que estou perdendo!

Um olhar, doce, tranqüilo, sorridente e profundo,
cativante como o raiar da aurora, quero correr,
sentir a brisa fresca da manhã, quero respirar,
teu perfume a me atrair, me chamar, preciso viver,
estes momentos sem tempo ou espaço, desejo te amar,
te beijar, te falar, pois és minha vida, meu mundo!

E corre outra vez a madrugada, e meus dedos voam
a martelar estas frases em negro, contra o branco
desta tela sem alma, seguro na garganta meu pranto,
faltam-me as cores da tua presença, e aquele manto
de paz e carinho com que me abrigas, me envolves,
e as palavras doces com que minhas mágoas dissolves,
lembranças de ti, de nós, em minha cabeça ecoam!

Tão simples, tão puras, como um regato cristalino,
sem adornos, que não esparsas penhas desgastadas,
a testemunhar o correr das águas, persistência,
sempre na faina de moldar, sem perder a inocência,
seu caminho na terra, margens suaves, relvadas,
onde ainda é criança, este coração de menino!

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Nos Braços do Anjo

Perca seu tempo esperando por uma segunda chance
Para o intervalo que aliviará isso
Lá há sempre uma razão para não se sentir suficientemente bem
E é difícil no fim do dia
Eu preciso de alguma distração oh lindo desprendimento
Memórias se infiltram pelas minhas veias
Elas talvez sejam vazias e leves, e talvez
Eu encontre alguma paz esta noite

Nos braços de um Anjo, voar para bem longe daqui
Desta escuridão, quarto gelado de hotel e o infinito que você teme
Você fora dos destroços do seu devaneio silencioso
Você está nos braços de um Anjo, talvez encontre algum conforto aqui

Tão cansado co caminho reto, e para todo lugar que você olha
Há abutres e ladrões nas suas costas
A tempestade continua destruindo, você continua construindo mentiras
Você se redime com todos de quem precisa
Não faz diferença, escapar uma última vez
É mais fácil acreditar
Nesta doce loucura, esta tristeza gloriosa
Que me deixa de joelhos

Nos braços de um Anjo longe daqui
Desta escuridão, quarto gelado de hotel e o infinito que você teme
Você fora dos destroços do seu devaneio silencioso
Você está nos braços de um Anjo, talvez encontre algum conforto aqui

Você está nos braços de um Anjo, talvez encontre algum conforto aqui

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A nova aldeia


Não apreciaria viver dentro de uma reluzente caixa de vidro

Um modismo invade as grandes cidades: a construção de complexos residenciais que são muito mais do que um simples lugar para se morar. No entorno, uma vasta rede de estabelecimentos comerciais e de lazer permite aos financeiramente afortunados desenvolver todas as suas atividades profissionais e sociais dentro do mesmo quarteirão. Não é mais preciso se expor aos perigos de um cotidiano carregado de violência. Descobriu-se a forma definitiva de blindar alguns eleitos com a tão sonhada segurança máxima. Adeus carro, adeus poluição e trânsito congestionado, adeus filas.

Por trás de conceitos ultramodernos de bem-estar existe mais uma razão para se buscar essa maneira inédita de nos relacionarmos com os outros: o desejo de pertencer novamente a uma aldeia. É a vontade de não ser um estranho entre estranhos, fato que tem permeado quase todas as relações com vizinhos e até colegas de trabalho. Ao longo do tempo e comprometidos com um fazer alucinante que cobra produtividade cada vez maior, fomos deixando de lado o prazer de uma boa conversa. Precisamos de atividades lúdicas que nos permitam suportar com menos amargura uma realidade nem sempre próxima da sonhada. Estes espaços prometem um contato mais íntimo e a reinauguração de laços que foram perdidos no momento em que nos tornamos seres urbanos.

Ainda é cedo para saber se essa experiência tornará as pessoas mais gregárias ou egoístas. A disposição quase ilimitada de recursos tecnológicos tem nos deixado preguiçosos e acomodados, transferindo todo o movimento do corpo para um único dedo. Claro, compensa-se isso sofrendo em academias. Caso contrário, fica difícil acomodar silenciosamente dentro de nós a sensação de culpa por tanta inércia. Mas aqui se perde algo que pertence à nossa natureza – um certo resquício de nomadismo, que ainda deve estar carimbado no código genético. Mais: ao propor essa condição de autossuficiência, empilhando pessoas dentro de um espaço criado artificialmente (embora de luxo), rouba-se um desejo mais largo de movimentação, de busca do desconhecido. Sem esse sentimento estamos fadados a viver num Big Brother. Mais sofisticado, mas ainda assim repleto de olhares profissionais que velam pela nossa tranquilidade.

Tudo isso representa, no mínimo, um alerta, um sinalizador do nosso cansaço, de como estamos nos sentindo perdidos nesse mundo que solapou a intimidade. Que só reconhece o valor que temos pela quantidade de mercadorias que o trabalho pode gerar. Criamos pequenos nichos para nos proteger. E aí está o horror e a maravilha: somos peritos em destruição, mas conseguimos, quase que simultaneamente, gerar novas e requintadas formas de realidade, que reduzem o perigo de sermos extintos.

Será que eu me sentiria feliz nesses espaços assépticos, projetados com uma simetria próxima do totalitarismo? A desordem faz bem à alma. Ela nos obriga a investigar medos e inseguranças, fundamental para o processo de evolução interior. Todo o conforto que o dinheiro pode pagar, sim. Tudo à disposição 24 horas por dia, também, que seja. Mas esse excesso de comodidade não quebrará a nossa espinha a ponto de nos tornar seres letárgicos, quase vegetativos? O bom, quando é muito bom, pode ser um veneno, porque amolece o corpo. Expor-se é necessário para quem está interessado em estabelecer uma relação mais profunda consigo mesmo.

Gosto do imprevisto, da surpresa, do que não foi matematicamente planejado. Por isso, sei que não apreciaria viver dentro de uma reluzente caixa de vidro. Minha aldeia preferida tem gramados, árvores e bichos. E gente que ri, relaxada e solta. Procurarei estes produtos em outro mercado imobiliário.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Poço



Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Pablo Neruda

Assaltando o paraíso


Deve ser muito cansativo querer ter a fisionomia de Deus

Gosto dessa expressão, que roubo do filósofo Luiz Felipe Pondé: “somos todos assaltantes do paraíso.” Todos buscando o sublime, o perfeito, o eterno. O que não existe. Criamos mitos sustentados pelo desejo de pureza, de higiene da alma. Poucos têm a coragem de olhar para o abismo. A busca de um sentido para as coisas é destino comum aos homens. Falsificamos a verdade sempre que possível. Ainda bem. Não conseguiríamos suportar o peso que é conviver constantemente com a ideia do próprio fim. A felicidade se torna mais acessível para quem ignora. O sentimento do trágico, no entanto, pode nos salvar. A consciência do absurdo e a tentativa de ultrapassá-lo é o que sustenta as religiões. Um homem sem medo transforma-se facilmente num monstro. Por que não matar, não roubar, não trair, se não sofrerei nenhuma punição? A fé é uma droga legítima para nos livrar do desespero. Sem ela habitamos o deserto.

Falo de mim. Cresci com síndrome de perfeição. Nunca gostei de rascunhos. Ou era capaz de fazer a edição definitiva ou nem tentava. Depois de alguns anos de terapia, de ler dezenas, se não centenas de livros, hoje me sinto um ex-adicto. Mas que precisa ainda de supervisão para não reincidir. Já consigo gostar do imperfeito, da fissura, da desordem. Porém, guardo alguns resquícios: não suporto louça suja na pia, dobro a roupa sobre a banqueta, torturo-me com os atrasos, meus e alheios. Sempre fui meu pior algoz. Mas melhorei muito. Já não assalto o paraíso com tanta frequência.

Aprendi a rir, a pensar com o lápis, em mais uma expressão feliz do Pondé. Se não deu certo, apago e tento novamente. Já me permito isso. Sei o quanto me esforço. Não sou preguiçoso, embora ainda busque um certo parentesco com o ideal. Que eu espero nunca alcançar. É muito cansativo querer ter a fisionomia de Deus. Aprendi que tudo é empréstimo e desaparece rapidamente, à nossa revelia. Amores terminam, festas terminam, amizades terminam. Motivo para me sentir triste? Ao contrário, percebo o pouco que sou, a fragilidade do meu corpo e a indiferença do universo. E é nesse esvaziamento que alicerço minha vontade quase sobrenatural de mastigar a vida em grandes bocados.

Muitas vezes não sei o que fazer com a minha liberdade. Mas sei, depois de muitos choros e raivas incontidas, que não preciso ceder sempre a códigos sociais, imposturas coletivas que estão na base de toda traição moral e ética. Abri o cadeado e não lembro onde o deixei. Quero o cotidiano que lambe a alma e a conforta. Mas não desprezo o inédito, a busca de toda a forma de beleza. É um lenitivo para o que se esfuma.

Uma frase pode me fazer feliz durante uma semana. Mas um abraço também. Creio que a filosofia me tornou mais lúcido, mas não mais triste, como geralmente acontece. Não sou um homem de Academia. Gosto das ruas, das praças, de ver as pessoas procurando, colocando sua assinatura em contratos de afeto: casamento, filhos, trabalho. O que seria de nós sem isso? Muitas vezes não dá certo, ou não dura o quanto gostaríamos, mas os vincos de luz que marcam nosso corpo e nosso espírito justificam o fim da juventude, da pele doce, dos dias de esplendor. Reconhecer isso é dar bom-dia à existência, nada mais.

Embora continue brigando com Freud, sei que somos mais pulsão e instintos incontroláveis do que donos do nosso querer e sentir. Entrego-me a essa verdade sem me torturar. Não recuso o animal que há em mim. Quero o descontrole quando o assunto é amor, sexo, paixão. Saúdo meus demônios, despedindo-me provisoriamente dos anjos.

Pertenço-me vagamente. Resulto no que os outros fizeram de mim. Tenho dívidas e créditos para com todos. Essa humildade é meu paraíso. Já consigo entrar nele sem forçar a fechadura.

Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.

Pablo Neruda