quarta-feira, 6 de julho de 2011

SIMPLES


Ando apaixonado por gente, sou uma espécie de filósofo feliz em busca do humano

Minha prece, ao deitar, passou a ser esta: que o dia de amanhã me surpreenda mais lúcido, mais leve, mais atento. E que eu possa, principalmente, ir me libertando das inúmeras prisões que fui forjando ao longo da vida. Para tanto, valho-me da palavra e do silêncio, da observação acurada e do gesto que alcança o outro, sem me esmagar. Somos todos devedores, e a compreensão dessa verdade elementar pode nos conduzir à prática de ações mais virtuosas, proposição tão cara aos antigos gregos.

Foi dito por Sócrates: “Seja um lâmpada para você mesmo.” A lenta arquitetura que vamos construindo com o nosso nome não se faz com distrações, com um deixar passar, como se a maturidade vestisse somente a soma das horas vividas. Há seres que morrem mais ignorantes do que nasceram, pois além de recusar as aprendizagens, perderam o sentido essencial da inocência. Deixaram suas almas se estragar junto com seus corpos, numa conivência tácita com o fim de tudo. Não me alinho aos que aceitam facilmente as perdas. Sei que é uma arte difícil e que assimilá-las é muito árduo. Mas minhas mãos já não estão crispadas, recusando o gesto que liberta e nos devolve ao novo.

Ao me aproximar dos 45 anos, traço um novo itinerário. Algumas decisões de ordem concreta têm facilitado significativamente a chegada dessa idade, quando é quase um dever refletir sobre si mesmo. Três vezes por semana faço longas caminhadas com uma amiga. Encontro também a possibilidade de traduzir emoções que estavam somente rascunhadas, como se me faltasse coragem de jogar luz sobre elas. O olhar não comprometido com a ação pode ser a melhor bússola. Como nos disse o filósofo Frédéric Gros, a caminhada nos livra das ilusões do indispensável. E não é só o corpo que se põe em movimento. Andamos com as pernas e com a cabeça, numa espécie de competição feliz, quase uma redenção para dias tão carregados. Durante uma hora e meia criamos nosso próprio país, com o mínimo de regras e o máximo de liberdade que os condicionamentos nos permitem. Fazemos confissões recíprocas, provocando um no outro o compromisso da fidelidade.

Já há alguns meses, também, tenho observado com atenção redobrada a minha alimentação. Sem reduzir o prazer desse ato que tantas vezes compete com a libido, já não me interessam mais os açúcares e as gorduras. Faço declarações de amor à vida e a mim mesmo ao diminuir o consumo de carne, ao beber mais sucos, ao ingerir fibras, frutas e verduras. É só através da prática que descobrimos que atitudes assim alteram não só o nosso organismo. Toda uma percepção do existir fica embotada ao nos empanturrarmos com tanta comida artificial. Não lembro de outra época em que me senti tão confortável, numa relação plena com meu corpo. É uma decisão que muitas vezes nos põe em confronto com pessoas próximas, que sequer se permitem questionar os excessos que cometem. Mas é, também, uma educação para os sentidos, na medida em que um organismo livre de tantas drogas legalizadas começa a perceber com mais clareza tudo o que gravita ao seu redor.

Nessa busca por um estado de maior consciência, mesclo as tantas horas de leitura diária – grande prazer para o espírito – com a ampliação dos encontros, com a multiplicação dos abraços. Ando apaixonado por gente, sou uma espécie de filósofo feliz em busca do humano, de suas vicissitudes, carências, acolhimentos. Reaprendo a magnífica arte da conversação, do diálogo que exige perseverança e respeito não só pelo que difere, mas também pela sobreposição das igualdades. Estamos tão encharcados de ego que normalmente não sobra tempo e nem disposição para ver, simplesmente ver.

Não sonho voltar no tempo e muito menos espiar o que me espera lá adiante. Gosto do movimento, mas aprendi a encurtar as expectativas. Namoro o presente com olhar inebriado. Tudo ficou mais simples, parecido com o vento. Continuo também lendo poesia, fazendo meditação, acordando cedo, rezando para o meu anjo da guarda, tendo muitas dúvidas. E rindo, rindo muito.

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