Deve ser muito cansativo querer ter a fisionomia de Deus
Gosto dessa expressão, que roubo do filósofo Luiz Felipe Pondé: “somos todos assaltantes do paraíso.” Todos buscando o sublime, o perfeito, o eterno. O que não existe. Criamos mitos sustentados pelo desejo de pureza, de higiene da alma. Poucos têm a coragem de olhar para o abismo. A busca de um sentido para as coisas é destino comum aos homens. Falsificamos a verdade sempre que possível. Ainda bem. Não conseguiríamos suportar o peso que é conviver constantemente com a ideia do próprio fim. A felicidade se torna mais acessível para quem ignora. O sentimento do trágico, no entanto, pode nos salvar. A consciência do absurdo e a tentativa de ultrapassá-lo é o que sustenta as religiões. Um homem sem medo transforma-se facilmente num monstro. Por que não matar, não roubar, não trair, se não sofrerei nenhuma punição? A fé é uma droga legítima para nos livrar do desespero. Sem ela habitamos o deserto.
Falo de mim. Cresci com síndrome de perfeição. Nunca gostei de rascunhos. Ou era capaz de fazer a edição definitiva ou nem tentava. Depois de alguns anos de terapia, de ler dezenas, se não centenas de livros, hoje me sinto um ex-adicto. Mas que precisa ainda de supervisão para não reincidir. Já consigo gostar do imperfeito, da fissura, da desordem. Porém, guardo alguns resquícios: não suporto louça suja na pia, dobro a roupa sobre a banqueta, torturo-me com os atrasos, meus e alheios. Sempre fui meu pior algoz. Mas melhorei muito. Já não assalto o paraíso com tanta frequência.
Aprendi a rir, a pensar com o lápis, em mais uma expressão feliz do Pondé. Se não deu certo, apago e tento novamente. Já me permito isso. Sei o quanto me esforço. Não sou preguiçoso, embora ainda busque um certo parentesco com o ideal. Que eu espero nunca alcançar. É muito cansativo querer ter a fisionomia de Deus. Aprendi que tudo é empréstimo e desaparece rapidamente, à nossa revelia. Amores terminam, festas terminam, amizades terminam. Motivo para me sentir triste? Ao contrário, percebo o pouco que sou, a fragilidade do meu corpo e a indiferença do universo. E é nesse esvaziamento que alicerço minha vontade quase sobrenatural de mastigar a vida em grandes bocados.
Muitas vezes não sei o que fazer com a minha liberdade. Mas sei, depois de muitos choros e raivas incontidas, que não preciso ceder sempre a códigos sociais, imposturas coletivas que estão na base de toda traição moral e ética. Abri o cadeado e não lembro onde o deixei. Quero o cotidiano que lambe a alma e a conforta. Mas não desprezo o inédito, a busca de toda a forma de beleza. É um lenitivo para o que se esfuma.
Uma frase pode me fazer feliz durante uma semana. Mas um abraço também. Creio que a filosofia me tornou mais lúcido, mas não mais triste, como geralmente acontece. Não sou um homem de Academia. Gosto das ruas, das praças, de ver as pessoas procurando, colocando sua assinatura em contratos de afeto: casamento, filhos, trabalho. O que seria de nós sem isso? Muitas vezes não dá certo, ou não dura o quanto gostaríamos, mas os vincos de luz que marcam nosso corpo e nosso espírito justificam o fim da juventude, da pele doce, dos dias de esplendor. Reconhecer isso é dar bom-dia à existência, nada mais.
Embora continue brigando com Freud, sei que somos mais pulsão e instintos incontroláveis do que donos do nosso querer e sentir. Entrego-me a essa verdade sem me torturar. Não recuso o animal que há em mim. Quero o descontrole quando o assunto é amor, sexo, paixão. Saúdo meus demônios, despedindo-me provisoriamente dos anjos.
Pertenço-me vagamente. Resulto no que os outros fizeram de mim. Tenho dívidas e créditos para com todos. Essa humildade é meu paraíso. Já consigo entrar nele sem forçar a fechadura.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Assaltando o paraíso
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