segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A nova aldeia


Não apreciaria viver dentro de uma reluzente caixa de vidro

Um modismo invade as grandes cidades: a construção de complexos residenciais que são muito mais do que um simples lugar para se morar. No entorno, uma vasta rede de estabelecimentos comerciais e de lazer permite aos financeiramente afortunados desenvolver todas as suas atividades profissionais e sociais dentro do mesmo quarteirão. Não é mais preciso se expor aos perigos de um cotidiano carregado de violência. Descobriu-se a forma definitiva de blindar alguns eleitos com a tão sonhada segurança máxima. Adeus carro, adeus poluição e trânsito congestionado, adeus filas.

Por trás de conceitos ultramodernos de bem-estar existe mais uma razão para se buscar essa maneira inédita de nos relacionarmos com os outros: o desejo de pertencer novamente a uma aldeia. É a vontade de não ser um estranho entre estranhos, fato que tem permeado quase todas as relações com vizinhos e até colegas de trabalho. Ao longo do tempo e comprometidos com um fazer alucinante que cobra produtividade cada vez maior, fomos deixando de lado o prazer de uma boa conversa. Precisamos de atividades lúdicas que nos permitam suportar com menos amargura uma realidade nem sempre próxima da sonhada. Estes espaços prometem um contato mais íntimo e a reinauguração de laços que foram perdidos no momento em que nos tornamos seres urbanos.

Ainda é cedo para saber se essa experiência tornará as pessoas mais gregárias ou egoístas. A disposição quase ilimitada de recursos tecnológicos tem nos deixado preguiçosos e acomodados, transferindo todo o movimento do corpo para um único dedo. Claro, compensa-se isso sofrendo em academias. Caso contrário, fica difícil acomodar silenciosamente dentro de nós a sensação de culpa por tanta inércia. Mas aqui se perde algo que pertence à nossa natureza – um certo resquício de nomadismo, que ainda deve estar carimbado no código genético. Mais: ao propor essa condição de autossuficiência, empilhando pessoas dentro de um espaço criado artificialmente (embora de luxo), rouba-se um desejo mais largo de movimentação, de busca do desconhecido. Sem esse sentimento estamos fadados a viver num Big Brother. Mais sofisticado, mas ainda assim repleto de olhares profissionais que velam pela nossa tranquilidade.

Tudo isso representa, no mínimo, um alerta, um sinalizador do nosso cansaço, de como estamos nos sentindo perdidos nesse mundo que solapou a intimidade. Que só reconhece o valor que temos pela quantidade de mercadorias que o trabalho pode gerar. Criamos pequenos nichos para nos proteger. E aí está o horror e a maravilha: somos peritos em destruição, mas conseguimos, quase que simultaneamente, gerar novas e requintadas formas de realidade, que reduzem o perigo de sermos extintos.

Será que eu me sentiria feliz nesses espaços assépticos, projetados com uma simetria próxima do totalitarismo? A desordem faz bem à alma. Ela nos obriga a investigar medos e inseguranças, fundamental para o processo de evolução interior. Todo o conforto que o dinheiro pode pagar, sim. Tudo à disposição 24 horas por dia, também, que seja. Mas esse excesso de comodidade não quebrará a nossa espinha a ponto de nos tornar seres letárgicos, quase vegetativos? O bom, quando é muito bom, pode ser um veneno, porque amolece o corpo. Expor-se é necessário para quem está interessado em estabelecer uma relação mais profunda consigo mesmo.

Gosto do imprevisto, da surpresa, do que não foi matematicamente planejado. Por isso, sei que não apreciaria viver dentro de uma reluzente caixa de vidro. Minha aldeia preferida tem gramados, árvores e bichos. E gente que ri, relaxada e solta. Procurarei estes produtos em outro mercado imobiliário.

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