Ninguém vê a si mesmo
Por maior que seja o esforço, o resultado será quase sempre nulo. Não conheci até hoje ninguém (estou incluso na estatística) que conseguisse ver a si mesmo com isenção, com equanimidade. Estamos tão comprometidos em passar uma imagem que se aproxime da perfeição que nada é capaz de destruir essa trapaça mental que costumamos fazer. Mesmo que defeitos se sobressaiam gritantemente em relação às qualidades, serão estas últimas a ocupar um lugar de destaque no nosso diálogo com o outro.
Isso levanta uma questão crucial em relação à terapia. O que comumente apresentamos ao profissional que se dedica a nos ouvir atentamente é só uma versão do que somos. A nossa versão. Não necessariamente a realidade, o que de fato é. Em muitos casos, esse desfocamento é que nos permite seguir em frente, mantendo a uma certa distância a depressão. Como não há ninguém para confrontar o que dizemos, fica o dito pelo não dito e o resultado de muitos tratamentos costuma ser desastroso. O que tenho visto em amigos “analisados” é uma grande confusão entre ser autêntico, dizer a verdade e a construção falsa e arrogante de um eu que se coloca sempre em primeiro lugar.
É raro encontrar alguém que tenha a coragem de se expor e expor o que descobre de pior dentro de si. Humano, compreensível. Mas chega uma hora na vida em que não dá mais para fazer de conta que somos a criação suprema da natureza. E vai aqui uma crítica suplementar a algo que vejo cada vez mais em quem passa uma ou duas horas nos consultórios: alguns profissionais têm se especializado em recalcar essas áreas sombrias de seus pacientes, ao invés de jogar luz sobre elas e tentar entender o porquê de determinadas atitudes. Chama-se a isso reforçar a auto-estima? Não sei, mas valorizar posturas autoritárias, por exemplo, não costuma nos melhorar em absolutamente nada. O que percebo é que eles acabam fornecendo os argumentos que precisamos para justificar nossa arrogância e prepotência.
De minha parte, tenho tentado, dia após dia, me desarmar e chegar sem escudos aos seres com que convivo. É certo que o resultado nem sempre é o desejado, mas a tentativa de reconhecer o que em mim é falho, as minhas obsessões, os demônios que me habitam, talvez mereça algum crédito. Provavelmente essa busca seja o resultado do meu cansaço em ver tantas pessoas placidamente sentadas em seu trono particular, com total desconsideração pelos desejos dos que os cercam. Quase sempre com a boca repleta de frases que fariam um ditador viciado em poder sentir-se aprendiz.
Não é fácil se despir desses auto-enganos que vamos laboriosamente alimentando ao longo da vida. Com isso não busco negar a importância da construção de uma boa imagem. Mas ela tem que ter pelo menos uma razoável relação com o que de fato somos. Caso contrário, morreremos com a falsa crença de que quem tem que mudar é a esposa, o filho, o vizinho, o colega. Uma pequena dose de honestidade é vital para desembaçar o vidro que colocamos entre nós e nós mesmos.
Vou persistir nessa interminável tarefa de trapacear um pouco menos comigo. Em algum momento terei que me confrontar. Postergar esse desafio não me parece uma atitude inteligente. Pretendo recorrer a quem seja necessário para que isso aconteça. Mas sempre com muita desconfiança nos resultados. Somos mestres em disfarces. A segunda resolução é que desisti de tentar fazer o jogo do convencimento, essa tentativa de mudar quem está próximo. Pura perda de tempo. São decisões estritamente pessoais e que não podem ser forçadas por uma mão alheia, por mais leve que ela seja.
Eu sou o que menos sabe de mim. Sou meu maior desconhecido. Preciso de todos para retirar essa espessa camada que me impede de ver o óbvio. O difícil óbvio que muitas vezes embaralha o que deveria nascer encharcado de sinceridade. Se me furtar a isso, estarei cometendo a maior das traições, talvez a única que mereça este nome.
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