domingo, 3 de junho de 2012


A patologia do topo

Nestes tempos de luzes e palavras em profusão, esquecemos que uma das melhores coisas que se pode desejar é ser um coadjuvante. Não precisar desempenhar o papel principal, contentando-se em permanecer de lado, observando... Que alívio! O peso e a responsabilidade acabam recaindo sobre as pessoas que gostam de estar na primeira fila. Podemos, com grandes ganhos, ser meros espectadores do drama ou da comédia que estão sendo encenados.

Irmã Marta, freira sábia e serena, disse-me, numa dessas conversas com ecos filosóficos, que encontrou num livro a expressão perfeita para traduzir a síndrome que nos assola: a patologia do topo. A necessidade de estar sempre em evidência, custe o que custar. O pior é que todos nós parecemos ansiar por isso, o que, em termos lógicos e mesmo espaciais, é impossível de acontecer. A banalização da escrita, por exemplo, transformou quem sabe rabiscar algo num papel ou consegue juntar umas poucas palavras em grande artista. O autor precedendo a obra. O criador sobrepondo-se à criação. Não devem ter lido Rilke. Ele nos ensinou que o melhor caminho para que a obra permaneça é contentar-se com o próprio desaparecimento. Nada nos pertence. E o que somos ou fazemos adere ao outro, a tal ponto que a imagem original já não tem importância alguma.

No entanto, a gente só faz essa descoberta depois de ter vivenciado isso organicamente. Não está em nós a capacidade de nos retirarmos do palco antes do aplauso. Talvez o erro resida em querer continuar para sempre no pódio. É irreal, é contra o movimento que gera a dialética da vida. Por isso a necessidade de se ter uma consciência aguda de que tudo se fragmenta, voltando ao nada. A estabilidade é cúmplice da inconstância. E a liberdade flerta com o anonimato, com o poder de ir e vir sem que nossos atos mereçam muita observação. Estamos ensandecidos para entrar na arena, mas querendo só as vantagens que podem advir disso.

Fala-se que hoje as pessoas são famosas porque são famosas. E mais não se pode dizer da maioria que acaba gerando as manchetes da semana. Que digo eu? Do dia, quanto muito. Continuo acreditando que a vaidade precisa ser domesticada, caso contrário ela coloca em risco esse longo trabalho de observação a que se submetem todos aqueles que acreditam no poder do silêncio e da contenção. É muito difícil resistir, não ceder a tantas tentações que podem nos transformar, de uma hora para outra, na personagem que está em destaque. São seduções que pertencem à ordem do banal, no entanto.

Na ciranda do mundo, o que nos salva é saber, como disse Fernando Pessoa, que “as primaveras não precisam de nós para continuar florindo”. É só olhar ao redor para descobrir que muitos já estão comprando ingresso para outro espetáculo, não para o nosso. Compreender isso é afastar-se da dor, beneficiando-se de um entendimento que, se por um lado exige disciplina e severidade, por outro nos leva a conhecer um estado de repouso interior.

No fim do nosso encontro, essa amiga me disse: “Estamos todos com o eu obeso” – frase que retrata bem o quanto inflacionamos nossa própria imagem. Se insistirmos em nutrir exageradamente esse eu, corremos o risco de viver todos comprimidos numa pequena gaiola de vidro. Faremos estranhas macaquices para que o primeiro passante nos aplauda. Mas seremos apenas mais um brinquedo descartável neste gigantesco circo de plástico que ora habitamos.

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