segunda-feira, 28 de maio de 2012

Céu e inferno


Céu e inferno

Na tradição cristã, paraíso e inferno são lugares reservados aos bons ou aos que cometeram ações condenáveis durante a existência. Graça alcançada ou punição merecida. São descritos com riqueza de detalhes na iconografia e na literatura, e quase nos é permitido localizá-los geograficamente - morada que nos será reservada após a morte. Não há porque desrespeitar essa parte da história humana que nos incita à compaixão e ao amor ao próximo. E também ajuda a refrear alguns de nossos piores instintos.

Ultimamente, no entanto, tenho me convencido cada vez mais que tanto um quanto o outro só podem existir dentro de nós. São casas que construímos na alma. Podemos transformar a vida num verdadeiro holocausto emocional a partir de algumas culpas que carregamos. Não importa que a realidade desminta o que supomos, e apenas supomos, ter acontecido. Em nossa consciência, o arrependimento por algum erro cometido pode tomar proporções abissais e nos impossibilitar de seguir adiante. Já experimentei isso algumas vezes, sobretudo quando da morte de uma pessoa querida. Surpreendi-me na prática de torturas mentais, crendo que poderia ter feito sempre mais. Mesmo sabendo que esses remorsos tardios são inúteis, que não irão mudar o que já é definitivo. Persistimos, no entanto, numa espécie de suplício infindável, ampliando omissões insignificantes, mais fruto da distração do que de uma ação premeditada.

Ao habitar o inferno construído em nossa imaginação palavras de amigos não nos salvam. E a lembrança de atos de generosidade que marcaram nossa convivência com quem já partiu não surte resultado algum. Não deixa de ser um sentimento de onipotência, o que sentimos, como se o destino devesse se vergar diante da dor que se apossa de nós, dando-lhe uma configuração diversa. Frases carregadas de amor, o cuidado revestido de zelo de uma vida inteira... Pouco importa. O que persiste nas entranhas é o remorso pela breve ausência, por algo que ficou por ser dito e feito. O inferno dentro de nós.

Ao sentirmos isso, também acabamos por nos precipitar nos julgamentos alheios, interpretando levianamente a existência dos que estão ao nosso redor. Analisamos com superficialidade algumas características exteriores e prontamente colocamos um rótulo: feliz, deprimido, histérico, melancólico, ambicioso. Mal sabemos de suas habitações interiores. Do que os corrói ou os eleva às nuvens. É o invisível corpo interior que acaba por configurar o que está traduzido em nossa fisionomia. Mas tudo é como deve ser. Erros só são inúteis quando não abrem um fulcro na consciência e não nos fazem buscar um caminho de maior lucidez. Para evitar isso contam a sinceridade com que nos relacionamos com os outros e, sobretudo, o difícil exercício de subtrair as doses maciças de egoísmo que costumam acompanhar a nossa assinatura como seres humanos.

Sei que, para alguns afortunados, o paraíso fica sempre a dois passos de onde estão. Compreenderam desde cedo que nessa misteriosa trama que encenamos nos cabe somente a aceitação. Quase todos buscam refinar o melhor que encontram dentro de si. Mas não há tempo suficiente e nem disposição, diga-se a verdade, para nos dedicarmos integralmente ao estudo do que somos. Poucos foram os sábios que ocuparam seus dias refletindo filosoficamente sobre o sentido de estarmos aqui. É provável que nunca o tenham encontrado, pois tudo isso que chamamos realidade pode receber a chancela do acaso. Mas ninguém, nem o mais cético dos céticos, pode afirmar isso com absoluta certeza.

Eu sigo me perguntando, sigo atordoado diante do que a linguagem não traduz. A arte me ampara, o silêncio me purifica, os abraços diminuem a tristeza. Sei que o que me resta ainda por viver será colorido pelo espanto ou me jogará em meio a uma nebulosa que tentará me engolfar emocionalmente. Até certo ponto, a decisão é minha. Mas não me iludo: tudo é breve. A morte continua dançando ao nosso redor. Somos atores desse espetáculo que precisa da fé para que o candeeiro ilumine brevemente a noite. Não apaguemos a luz com nossas próprias mãos.

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