Ah, o que eu não daria para ser o autor desta frase: “Desde o câncer de seio até a brotoeja, tudo é falta de amor.” Mas Nelson Rodrigues, um dos maiores estilistas da língua portuguesa, pensou-a antes. Na ausência de um talento tal, resta-me o consolo de repeti-la exaustivamente, espalhando-a pelos cômodos da minha mente. Toda a dor, toda a apatia, toda dilaceração do corpo e da alma, é falta de amor. Os que andam por aí cobiçando poder e fama, os arrogantes que pisam sobre os seus iguais, a moça triste trancada em seu quarto, o homem maduro que apunhala o horizonte com seus olhos... tudo é falta de amor. Pois os que têm afeto em abundância tantas vezes se desviam da doença e do tédio, vibrando como um arco retesado numa tarde de abril. Abençoam a repetição, a frase mil vezes dita, a mão rasgando o ar em busca de outra mão. São contentes a despeito do dinheiro miúdo, da roupa puída, do passeio doméstico. Conhecem a felicidade tranquila que nasce da certeza de serem amados.
Amor, essa vertigem mansa que distribui em justos pesos e medidas o valor de cada dia. Que é fatiado em horas e minutos, que se transformam em inimigos diante da ausência, aninhando-se na saudade para não sucumbir à dor. Mas, na presença iluminada, são afortunados e querem que o segundo seja século – a semana, eternidade. Subvertem a mais elementar das lógicas, domando o tempo para uso particular. Pergunte a um apaixonado o que o deixa nesse estado hipnótico e ele responderá, em redundância: a existência da pessoa querida. Aos outros causará estranheza esse sentimento tão desmesurado. Não procure entender. A matemática vira de cabeça para baixo e um mais um já não são dois. A palavra apenas o contorna, apenas se aproxima. Impossível conhecer o gosto, senão experimentando-o.
Nessa tarde tépida de outono, quando as últimas cigarras cortam com precisão o silêncio, lembro das pessoas que conheci e que habitaram o deserto da falta de amor. Foram poderosos, tiveram dinheiro, conheceram a adulação. Mas algo com a textura da pedra acompanhava seus gestos, sua fala. Mulheres também foram ludibriadas por essa armadilha feita de materiais caros, mas sem pulsação. Materiais mortos diante da exuberância de seres que, nada tendo, tudo tiveram quando habitados por um amor. Se pudéssemos colocar em pequenas aldeias esses felizes de alma, ali não se instalaria escola ou hospital, e muito menos fábricas de fazer coisas. Porque para os grandes amantes existir é do tamanho exato e mais nada se pode querer do que cristalizar na memória o que os deuses lhes deram sem custo algum. Porventura se perguntarão se é mérito ou acaso? Haverá uma loteria secreta distribuindo prêmios a João, André ou Cristina, sem que apostas sequer tenham sido feitas?
Há falta de amor, e tão pouco excesso. Não encontraremos aquele que se queixe de estar sendo amado em demasia. Que, cansado, pedirá uma pausa para se recompor. São ginastas que não conhecem o esgotamento, que passeiam pelos precipícios com a segurança que sentem nas planícies. Às vezes, sentados ao seu lado, absorvemos um pouco desse gosto de estar vivo. Mas não há empréstimo no querer. Admira-se, com o secreto desejo de que também nós possamos pertencer a essa confraria de saciados insatisfeitos, de lúcidos sem vigília.
Amor é poesia extravagante, escândalo que encabula o passante invejoso. Amor confunde, distrai, perdoa. Salva. Sem lógica, sem razão, pode nascer num domingo à noite, quando a tentação do suicídio é mais real. Amor burla, e cura mais que oração. Não adianta ser santo sem amor. Não adianta gabinete sem amor. Não adianta manhã azul sem o olhar azul do amor. Não me pergunte se, de verdade, sua falta causa câncer ou brotoeja. O que sei é que, amando, abro com as mãos uma floresta. Também quero esse mar que atordoa, antes de fechar a porta para o balanço final.
Amor, essa vertigem mansa que distribui em justos pesos e medidas o valor de cada dia. Que é fatiado em horas e minutos, que se transformam em inimigos diante da ausência, aninhando-se na saudade para não sucumbir à dor. Mas, na presença iluminada, são afortunados e querem que o segundo seja século – a semana, eternidade. Subvertem a mais elementar das lógicas, domando o tempo para uso particular. Pergunte a um apaixonado o que o deixa nesse estado hipnótico e ele responderá, em redundância: a existência da pessoa querida. Aos outros causará estranheza esse sentimento tão desmesurado. Não procure entender. A matemática vira de cabeça para baixo e um mais um já não são dois. A palavra apenas o contorna, apenas se aproxima. Impossível conhecer o gosto, senão experimentando-o.
Nessa tarde tépida de outono, quando as últimas cigarras cortam com precisão o silêncio, lembro das pessoas que conheci e que habitaram o deserto da falta de amor. Foram poderosos, tiveram dinheiro, conheceram a adulação. Mas algo com a textura da pedra acompanhava seus gestos, sua fala. Mulheres também foram ludibriadas por essa armadilha feita de materiais caros, mas sem pulsação. Materiais mortos diante da exuberância de seres que, nada tendo, tudo tiveram quando habitados por um amor. Se pudéssemos colocar em pequenas aldeias esses felizes de alma, ali não se instalaria escola ou hospital, e muito menos fábricas de fazer coisas. Porque para os grandes amantes existir é do tamanho exato e mais nada se pode querer do que cristalizar na memória o que os deuses lhes deram sem custo algum. Porventura se perguntarão se é mérito ou acaso? Haverá uma loteria secreta distribuindo prêmios a João, André ou Cristina, sem que apostas sequer tenham sido feitas?
Há falta de amor, e tão pouco excesso. Não encontraremos aquele que se queixe de estar sendo amado em demasia. Que, cansado, pedirá uma pausa para se recompor. São ginastas que não conhecem o esgotamento, que passeiam pelos precipícios com a segurança que sentem nas planícies. Às vezes, sentados ao seu lado, absorvemos um pouco desse gosto de estar vivo. Mas não há empréstimo no querer. Admira-se, com o secreto desejo de que também nós possamos pertencer a essa confraria de saciados insatisfeitos, de lúcidos sem vigília.
Amor é poesia extravagante, escândalo que encabula o passante invejoso. Amor confunde, distrai, perdoa. Salva. Sem lógica, sem razão, pode nascer num domingo à noite, quando a tentação do suicídio é mais real. Amor burla, e cura mais que oração. Não adianta ser santo sem amor. Não adianta gabinete sem amor. Não adianta manhã azul sem o olhar azul do amor. Não me pergunte se, de verdade, sua falta causa câncer ou brotoeja. O que sei é que, amando, abro com as mãos uma floresta. Também quero esse mar que atordoa, antes de fechar a porta para o balanço final.
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