domingo, 18 de julho de 2010

Autorretrato



Até o início da idade adulta, minha vida foi um verdadeiro drama mexicano, com direito a enredo de ópera. Achava lindo sofrer. E ai do amigo que não partilhasse essa gula desmesurada pelo desespero. Eles guardam pilhas de cartas encharcadas de lágrimas. Não fui dark por um triz,, se bem que por dentro tenha passado anos vestindo preto. Flertava mentalmente com o suicídio quase toda semana. Anunciava em público meu propósito de deixar esse mundo sombrio. O máximo que consegui foi assustá-los. Não ousei ir além da ingestão medrosa de três Lexotan depois de uma grande desilusão amorosa. Dormi o melhor sono da minha vida. Ainda sonho em recuperar aquele Éden provisório.

Depois, não sei exatamente o que aconteceu. Comecei a achar muito trabalhoso sofrer. O tédio perdeu todo o charme. Olhava para a solidão com certa desconfiança. Ainda era meu brinquedo preferido, mas já via algumas rachaduras que me deixavam meio desconfiado. Montanhas de livros lidos, um prazer mórbido em cutucar a tristeza... e tudo se evaporou como uma bolha de sabão. Foi um grande amor que me salvou? Foram dois anos de terapia? Não sei e bocejo ante a possibilidade de vasculhar o passado. Continuei enamorado das grandes ideias, da arte que traça o itinerário de nossas emoções, do percurso silencioso que fazemos tentando nos traduzir. Mas felizmente me cansei bem cedo de ficar buscando um sentido para tudo. É mais saudável ir experimentando e ver se dá certo ou não. É só me convidar que estou pronto pra ir. Sou fácil, fácil demais. Aprendi a colher bobagens, tirei a sorte grande.

É muito chato fazer o papel de vítima, achando que um raio está sempre prestes a cair sobre a nossa cabeça. Detesto ser o porta-voz de alguma tragédia. Minha ou alheia. Tudo passa tão rapidamente que eu quero usar a vida até furar a sola, como um filósofo me ensinou. Pode ser com o reencontro de um velho pião de minha infância, um beijo úmido numa tarde de inverno, o gosto áspero de uma bergamota colhida no pé. Tanto faz. Desenvolvi uma espécie de radar intuitivo que faz com que eu me aproxime das pessoas que sabem digerir melhor as manhãs do que os crepúsculos. Amo os crepúsculos, mas sei que eles me enfraquecem com sua poesia de fragilidades. Hoje eu me engano de alma aberta. As coisas passam, mas têm permanência dentro do meu olho. Sou míope só diante de temporais imaginários.

Tenho gratidões que me abismam. Alguém que me abraça ou empresta seu livro preferido de poesia. Alguém que me oferece uma xícara de café com leite ao lado de um fogão a lenha. É como respirar novamente as paredes da casa de minha avó. Alguém que me oferece uma carona no seu carro, no seu peito, na concha das suas mãos. É nesse mar de ternura que navego, sem precisar de outra bússola. Alguém que tenha a sensibilidade de chegar e partir na hora certa. Uma hora que nem eu mesmo sei qual é, mas que se ajusta às batidas do coração. Alguém que transborda, que não coloca tudo a juros de governo, imaginando algum tipo de garantia. A única garantia é o hálito de cada nova aurora.

Num certo dia da idade adulta parti de mim mesmo. E nunca mais tive o desejo de me procurar novamente. Sei que posso gostar de Aristóteles e de Chapolin Colorado. Qual o problema? Choro com qualquer drama romântico, cheio de clichês. Não preciso parecer inteligente vinte e quatro horas por dia. Prefiro a leveza, a gargalhada, o aconchego. Faço certas combinações com palavras que talvez deixem algumas pessoas felizes. Não vivo a crédito, vou me gastando o mais que posso. Gosto da contradição, porque ela me torna mais vasto. Tenho dificuldade em desistir, seguro com a ponta dos dedos o único fio da corda que não se rompeu. Ainda não conheci a saciedade, sou curioso e tenho cada vez mais fome. Do meu retrato, ainda estou investigando a moldura. A fisionomia pertence aos outros.

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