Receita de felicidade conjugal: você, o outro e a dúvida
O ideal romântico de querer ser tudo na vida de uma pessoa ainda persiste. Meio capenga, mas persiste. Por mais que os costumes mudem, por mais que nos demos conta de que nenhum ser satisfaz a totalidade de nossos desejos, carregamos a secreta fantasia de sermos os beneficiários de um amor ideal. Que não existe. E quando imaginamos que ele existe, que peso! Pense na escravidão de ter que atender à tamanha expectativa. Eu continuo preferindo os amores mansos, esses que se fazem dentro de uma ordem que podemos até considerar banal, mas que, quando perpassados pelo tempo, carregam uma madureza com a qual nenhum arroubo de paixão pode rivalizar.
Ser tudo para alguém equivale a abdicar da própria individualidade. A ver na solidão redentora uma espécie de traição para com o ser amado. Estar sempre junto, deslocando-se de si em busca de uma fusão irreal com um outro que não poderemos apreender nunca. Que os deuses me livrem de um amor tão sufocante, feito mais de ciúme e vigilância do que de platitudes e suavidades. Eu o quero bem pequeno, quase anônimo, mas que me permita antever o porto, o descanso das minhas fragilidades. Amor imperfeito, desses que não dariam jamais um enredo de romance. Mas que, em sua modéstia, saiba ancorar o diálogo, a dor e a alegria. E o insondável mistério do mundo que desaparece quando, ávidos, nos atiramos em busca de um amor total.
Eu me sinto incomodado diante desses casais que não sabem partilhar seus dias com amigos, com desconhecidos. Que não sabem incluir nesse querer algumas doses de perigo, de instabilidade. Porque não há segurança alguma, não há data de calendário que determine por quanto tempo seremos merecedores das benesses afetivas de esposas, maridos ou namorados.
Lembro do amigo de longa data que me olhava, sofrendo, e sofrendo me disse: “Ela se apaixonou por outro depois de vinte e três anos de casamento. Nós éramos como irmãos, pensei que nosso sangue já fosse de um único tipo.” Como não sentir medo de entregar os melhores anos de nossas vidas a uma só pessoa? Quando ela vai embora, o que é que fica? Uma dor (quando não uma raiva) tão grande que muitas vezes se transforma em doença física. Existirá alguém tão fascinante que mereça tal doação? Espero nunca encontrar, mas ir seguindo assim, com passos um pouco hesitantes, sem saber com quem vou me deparar um pouco além da esquina.
Parece que a melhor receita de felicidade conjugal continua sendo essa: você, o outro e a dúvida. Como, igualmente, a melhor maneira para prender alguém ao nosso lado é deixá-lo livre. Isso sim é atemporal e não obedece a códigos sociais ou aos preconceitos que compramos em cada época. Ficar junto por amor, mas com a consciência de que o caminho mais fácil de destruir isso é sendo tudo para quem resolveu nos escolher como membro único de uma confraria que nem sempre se traduz em felicidade.
Como tudo o mais, a sabedoria está na reserva, na contenção, naquilo que é, mas não é com certeza absoluta. Não tenho vontade de aprender as regras de um jogo diferente, até porque dá muito trabalho e o meu policial interno já recebeu demissão sumária há muito tempo. Quero ser surpreendido com rações diárias de um amor que se interessa em habitar outras casas, mas que queira voltar espontaneamente para mim.
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