segunda-feira, 22 de julho de 2013

O DOMÍNIO DAS PAIXÕES


Há muitos anos sou um leitor contumaz de textos budistas. Sempre que possível medito, na certeza de que só volto a encontrar meu eixo de lucidez e serenidade quando consigo silenciar as palavras na minha mente. Dos tantos ensinamentos que permearam a minha vida, talvez o mais difícil de alcançar ao longo do tempo foi o domínio das paixões. Eu pensava: Mas que graça podemos encontrar numa vida onde o que nos move – sexo, comida, dinheiro, poder – precisa ser domado o tempo todo? Como se afastar disso tudo sem o medo de nos tornarmos parecidos com essas criaturas pálidas, que exalam uma espécie de paz mortiça no olhar? Sim, que bonito, mas que tédio, meu Deus!

Passaram-se quase 20 anos até que algum lampejo dessa sabedoria fizesse visitações em minha alma. E o mais misterioso disso é que a primeira vez em que tive a noção de que poderia dizer não ao que me feria se deu num momento de quase distração. Assim como quem acorda e percebe que mudou profundamente durante o sono. Não houve esforço algum, simplesmente aconteceu.

Esse processo está apenas iniciando, bem sei, mas a alegria que sinto ao ser capaz de me reapropriar de mim mesmo, depois desse longo exílio, é quase indescritível. É uma espantosa certeza de que, agora sim, estou voltando para casa. Na verdade, voluntariamente nos colocamos num grande número de prisões, que nos parecem a melhor habitação que existe. Aceitamos um mundo que prioriza a entrega inconsciente e continuada a bens materiais e aos amores que avassalam, esses que flertam descaradamente com a loucura. Tamanho é o incitamento coletivo a tal tipo de comportamento que mal nos damos conta dos estragos que isso provoca dentro de nós. Cremos que é assim mesmo, que não há outra maneira de seguir em frente, felizes por nos tornarmos nossos próprios carcereiros.

O que aprendi até agora é modesto e suscetível de perda se eu não permanecer vigilante. Fico receoso quanto à possibilidade de ser surpreendido novamente por esse estado de torpor em que normalmente todos nos encontramos. Por outro lado, tenho a convicção de que a consciência adquirida não será perdida jamais. Estou olhando com mais cuidado para tudo o que faço e sinto. E aceitando com leveza os erros que continuo cometendo. Repito para mim, todos os dias, uma frase admirável de Marguerite Yourcenar: “Nada é mais lento do que o verdadeiro nascimento de um homem.” Precisamos aprender a esperar, eis tudo.

É provável que a consolidação desse aquietamento passará ainda por muitas provas. Sinto-me uma espécie de ex-adicto, precisando resistir às “tentações” que se apresentam. Mas é muito bom poder me sentir tão tranquilo na constatação de que não me importo mais com aquilo pelo qual a maioria das pessoas passa a vida lutando. Digo isso sem qualquer resquício de arrogância, pois o que vislumbro agora faz parte de uma jornada que provavelmente jamais terá fim. E se faço essa confissão não é no intuito de polir uma imagem que, no mais das vezes, nunca foi uma preocupação primordial para mim. Pretendo apenas dividir com mais pessoas essa convicção: é possível reconhecer a si mesmo quando as paixões desaparecem.

O que quero hoje é simplesmente seguir em frente, observando atentamente o que se passa dentro e fora de mim. Preciso de pouco para ser feliz. “A melhor maneira de viajar é sentir”, disse Fernando Pessoa. Que venham as estações das rosas e dos lírios, as lições de meus filósofos e poetas, as longas caminhadas que faço nas manhãs pelas estradas da colônia. De que mais preciso para me sentir grato? Diminuir os desejos, adormecer a fome e, quem sabe um dia, compreender em profundidade essas sentenças nascidas na mente de Chang-Tzu, um dos grandes mestres do taoísmo: “O homem de antigamente (os verdadeiros homens) não tinham nem amor pela vida, nem temiam a morte. A entrada na vida não causava nenhuma alegria: a saída não ocasionava nenhuma resistência. Eles aceitavam a vida e nela encontravam prazer. Eles aceitavam a morte e voltavam sem temor ao seu estado de vida passada. Estes eram os homens que podem ser chamados de homens verdadeiros.”

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