domingo, 15 de julho de 2012

Coisas velhas



Somos vistos com desconfiança por quem é praticante da velocidade, da urgência, das novas estratégias

Troco qualquer casa nova por uma antiga. Adoro porões, sótãos, corredores... Gosto do que tem cheiro de tempo, do que é rugoso, áspero, manchado. O que reluz tem sua beleza, ninguém há de negar, mas não possui a força do que é lentamente macerado pelas horas, acumulando em suas dobras feições definitivas. O novo movimenta o mundo, seduz pelo brilho, pela intensidade de tons. Mas não há nada que se compare a um cartaz desbotado, um homem vergado caminhando lentamente por uma rua, uma toalha com seus bordados descoloridos.

Há uma espécie de conspiração pairando no ar. Esconde-se o que já foi usado sob o risco de parecer anacrônico. Somos analisados, aprovados ou rejeitados, pela possibilidade que temos de adquirir bens. Lojas lançam campanhas para nos mostrar que estamos ultrapassados, guardando objetos com mais de seis meses de uso. Publicitários eficientíssimos no convencimento alheio afiam sua criatividade para nos provar que espertos são os que olham para frente, se possível prevendo, imaginando, intuindo o que nos agradará. Nada de ficar parado, devaneando. Nada de ficar acariciando o que tem alguma marca, sulcos que mostram resquícios de uma memória feita de presenças indeléveis.

Preciso desafiar essa ditadura branda, pois corro o risco de me perder nesse mar de ofertas. Quero me debruçar atentamente sobre o que me acompanha há vinte, trinta anos. A página amarelada de um livro, uma camiseta gasta, um sofá esquecido num canto e aquela árvore que parece ter estado sempre ali, gravitando em meio a sua sombra. Pratico com meus amigos a fidelidade dos amantes apaixonados. Acumulo palavras, choros, mortes e nascimentos, uma alegria que não cabe no corpo. E enquanto olho para as estradas soterradas sob o asfalto, busco o perdido som que os sapatos faziam em contato com a terra. Uma pequena rachadura mostra um broto que se esgueira em busca de sol. Não posso comprar em nenhum mercado essa sensação de eternidade, de algo que não terminará jamais dentro de mim.

Penso nesses amores pueris que duram duas ou três semanas. Jovens conhecendo o cansaço antes da descoberta. Eu sei, eu sei, quem de nós já não foi seduzido e logo se enfarou? O que me entristece é ver que continuamos nos enfastiando rapidamente aos sessenta, setenta anos de idade. Daqui a pouco daremos o mesmo destino das coisas a quem cometeu o pecado de envelhecer. Até o que digo soa tão ultrapassado... O desejo da permanência é confessado discretamente, com medo de sermos punidos por esse crime execrado pelos guardiões do que reluz.

Remanescentes de uma época que idolatra o progresso, somos vistos com desconfiança por quem é praticante da velocidade, da urgência, das novas estratégias. Oradores de voz inflada nos incitam a jogar fora tudo o que não tem mais utilidade. Sim, esvaziar gavetas é um ato de sanidade mental. Mas precisamos nos desfazer de tudo, tudo mesmo? Como jogar fora aquele bilhete cheio de pequenos corações e frases banhadas de adolescência? E o estojo de lápis de cor que ainda guarda em suas pontas arco-íris, florestas, riachos amanhecendo? E, diga-me, o que faço senão amar sigilosamente o poema de Cecília que carrego desde sempre em minha pasta?

Guardar, que é diferente de acumular, passou a ser um ato quase subversivo. Mas não há traição maior do que etiquetar como inútil tudo o que não tem valor prático. Quero um museu para colocar em prateleiras de vidro todas as lembranças que vão envelhecendo comigo. Não pretendo ser um homem sem passado. Irei caminhando ao encontro dos dias com a certeza de que terei sempre perto de mim um imenso baú para adormecer a saudade.

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