Até o início da idade adulta, minha vida foi um verdadeiro drama mexicano, com direito a enredo de ópera. Achava lindo sofrer. E ai do amigo que não partilhasse essa gula desmesurada pelo desespero. Eles guardam pilhas de cartas encharcadas de lágrimas. Não fui dark por um triz,, se bem que por dentro tenha passado anos vestindo preto. Flertava mentalmente com o suicídio quase toda semana. Anunciava em público meu propósito de deixar esse mundo sombrio. O máximo que consegui foi assustá-los. Não ousei ir além da ingestão medrosa de três Lexotan depois de uma grande desilusão amorosa. Dormi o melhor sono da minha vida. Ainda sonho em recuperar aquele Éden provisório.
Depois, não sei exatamente o que aconteceu. Comecei a achar muito trabalhoso sofrer. O tédio perdeu todo o charme. Olhava para a solidão com certa desconfiança. Ainda era meu brinquedo preferido, mas já via algumas rachaduras que me deixavam meio desconfiado. Montanhas de livros lidos, um prazer mórbido em cutucar a tristeza... e tudo se evaporou como uma bolha de sabão. Foi um grande amor que me salvou? Foram dois anos de terapia? Não sei e bocejo ante a possibilidade de vasculhar o passado. Continuei enamorado das grandes ideias, da arte que traça o itinerário de nossas emoções, do percurso silencioso que fazemos tentando nos traduzir. Mas felizmente me cansei bem cedo de ficar buscando um sentido para tudo. É mais saudável ir experimentando e ver se dá certo ou não. É só me convidar que estou pronto pra ir. Sou fácil, fácil demais. Aprendi a colher bobagens, tirei a sorte grande.
É muito chato fazer o papel de vítima, achando que um raio está sempre prestes a cair sobre a nossa cabeça. Detesto ser o porta-voz de alguma tragédia. Minha ou alheia. Tudo passa tão rapidamente que eu quero usar a vida até furar a sola, como um filósofo me ensinou. Pode ser com o reencontro de um velho pião de minha infância, um beijo úmido numa tarde de inverno, o gosto áspero de uma bergamota colhida no pé. Tanto faz. Desenvolvi uma espécie de radar intuitivo que faz com que eu me aproxime das pessoas que sabem digerir melhor as manhãs do que os crepúsculos. Amo os crepúsculos, mas sei que eles me enfraquecem com sua poesia de fragilidades. Hoje eu me engano de alma aberta. As coisas passam, mas têm permanência dentro do meu olho. Sou míope só diante de temporais imaginários.
Tenho gratidões que me abismam. Alguém que me abraça ou empresta seu livro preferido de poesia. Alguém que me oferece uma xícara de café com leite ao lado de um fogão a lenha. É como respirar novamente as paredes da casa de minha avó. Alguém que me oferece uma carona no seu carro, no seu peito, na concha das suas mãos. É nesse mar de ternura que navego, sem precisar de outra bússola. Alguém que tenha a sensibilidade de chegar e partir na hora certa. Uma hora que nem eu mesmo sei qual é, mas que se ajusta às batidas do coração. Alguém que transborda, que não coloca tudo a juros de governo, imaginando algum tipo de garantia. A única garantia é o hálito de cada nova aurora.
Num certo dia da idade adulta parti de mim mesmo. E nunca mais tive o desejo de me procurar novamente. Sei que posso gostar de Aristóteles e de Chapolin Colorado. Qual o problema? Choro com qualquer drama romântico, cheio de clichês. Não preciso parecer inteligente vinte e quatro horas por dia. Prefiro a leveza, a gargalhada, o aconchego. Faço certas combinações com palavras que talvez deixem algumas pessoas felizes. Não vivo a crédito, vou me gastando o mais que posso. Gosto da contradição, porque ela me torna mais vasto. Tenho dificuldade em desistir, seguro com a ponta dos dedos o único fio da corda que não se rompeu. Ainda não conheci a saciedade, sou curioso e tenho cada vez mais fome. Do meu retrato, ainda estou investigando a moldura. A fisionomia pertence aos outros.
domingo, 18 de julho de 2010
Autorretrato
domingo, 11 de julho de 2010
Você é tudo para mim
Receita de felicidade conjugal: você, o outro e a dúvida
O ideal romântico de querer ser tudo na vida de uma pessoa ainda persiste. Meio capenga, mas persiste. Por mais que os costumes mudem, por mais que nos demos conta de que nenhum ser satisfaz a totalidade de nossos desejos, carregamos a secreta fantasia de sermos os beneficiários de um amor ideal. Que não existe. E quando imaginamos que ele existe, que peso! Pense na escravidão de ter que atender à tamanha expectativa. Eu continuo preferindo os amores mansos, esses que se fazem dentro de uma ordem que podemos até considerar banal, mas que, quando perpassados pelo tempo, carregam uma madureza com a qual nenhum arroubo de paixão pode rivalizar.
Ser tudo para alguém equivale a abdicar da própria individualidade. A ver na solidão redentora uma espécie de traição para com o ser amado. Estar sempre junto, deslocando-se de si em busca de uma fusão irreal com um outro que não poderemos apreender nunca. Que os deuses me livrem de um amor tão sufocante, feito mais de ciúme e vigilância do que de platitudes e suavidades. Eu o quero bem pequeno, quase anônimo, mas que me permita antever o porto, o descanso das minhas fragilidades. Amor imperfeito, desses que não dariam jamais um enredo de romance. Mas que, em sua modéstia, saiba ancorar o diálogo, a dor e a alegria. E o insondável mistério do mundo que desaparece quando, ávidos, nos atiramos em busca de um amor total.
Eu me sinto incomodado diante desses casais que não sabem partilhar seus dias com amigos, com desconhecidos. Que não sabem incluir nesse querer algumas doses de perigo, de instabilidade. Porque não há segurança alguma, não há data de calendário que determine por quanto tempo seremos merecedores das benesses afetivas de esposas, maridos ou namorados.
Lembro do amigo de longa data que me olhava, sofrendo, e sofrendo me disse: “Ela se apaixonou por outro depois de vinte e três anos de casamento. Nós éramos como irmãos, pensei que nosso sangue já fosse de um único tipo.” Como não sentir medo de entregar os melhores anos de nossas vidas a uma só pessoa? Quando ela vai embora, o que é que fica? Uma dor (quando não uma raiva) tão grande que muitas vezes se transforma em doença física. Existirá alguém tão fascinante que mereça tal doação? Espero nunca encontrar, mas ir seguindo assim, com passos um pouco hesitantes, sem saber com quem vou me deparar um pouco além da esquina.
Parece que a melhor receita de felicidade conjugal continua sendo essa: você, o outro e a dúvida. Como, igualmente, a melhor maneira para prender alguém ao nosso lado é deixá-lo livre. Isso sim é atemporal e não obedece a códigos sociais ou aos preconceitos que compramos em cada época. Ficar junto por amor, mas com a consciência de que o caminho mais fácil de destruir isso é sendo tudo para quem resolveu nos escolher como membro único de uma confraria que nem sempre se traduz em felicidade.
Como tudo o mais, a sabedoria está na reserva, na contenção, naquilo que é, mas não é com certeza absoluta. Não tenho vontade de aprender as regras de um jogo diferente, até porque dá muito trabalho e o meu policial interno já recebeu demissão sumária há muito tempo. Quero ser surpreendido com rações diárias de um amor que se interessa em habitar outras casas, mas que queira voltar espontaneamente para mim.
O ideal romântico de querer ser tudo na vida de uma pessoa ainda persiste. Meio capenga, mas persiste. Por mais que os costumes mudem, por mais que nos demos conta de que nenhum ser satisfaz a totalidade de nossos desejos, carregamos a secreta fantasia de sermos os beneficiários de um amor ideal. Que não existe. E quando imaginamos que ele existe, que peso! Pense na escravidão de ter que atender à tamanha expectativa. Eu continuo preferindo os amores mansos, esses que se fazem dentro de uma ordem que podemos até considerar banal, mas que, quando perpassados pelo tempo, carregam uma madureza com a qual nenhum arroubo de paixão pode rivalizar.
Ser tudo para alguém equivale a abdicar da própria individualidade. A ver na solidão redentora uma espécie de traição para com o ser amado. Estar sempre junto, deslocando-se de si em busca de uma fusão irreal com um outro que não poderemos apreender nunca. Que os deuses me livrem de um amor tão sufocante, feito mais de ciúme e vigilância do que de platitudes e suavidades. Eu o quero bem pequeno, quase anônimo, mas que me permita antever o porto, o descanso das minhas fragilidades. Amor imperfeito, desses que não dariam jamais um enredo de romance. Mas que, em sua modéstia, saiba ancorar o diálogo, a dor e a alegria. E o insondável mistério do mundo que desaparece quando, ávidos, nos atiramos em busca de um amor total.
Eu me sinto incomodado diante desses casais que não sabem partilhar seus dias com amigos, com desconhecidos. Que não sabem incluir nesse querer algumas doses de perigo, de instabilidade. Porque não há segurança alguma, não há data de calendário que determine por quanto tempo seremos merecedores das benesses afetivas de esposas, maridos ou namorados.
Lembro do amigo de longa data que me olhava, sofrendo, e sofrendo me disse: “Ela se apaixonou por outro depois de vinte e três anos de casamento. Nós éramos como irmãos, pensei que nosso sangue já fosse de um único tipo.” Como não sentir medo de entregar os melhores anos de nossas vidas a uma só pessoa? Quando ela vai embora, o que é que fica? Uma dor (quando não uma raiva) tão grande que muitas vezes se transforma em doença física. Existirá alguém tão fascinante que mereça tal doação? Espero nunca encontrar, mas ir seguindo assim, com passos um pouco hesitantes, sem saber com quem vou me deparar um pouco além da esquina.
Parece que a melhor receita de felicidade conjugal continua sendo essa: você, o outro e a dúvida. Como, igualmente, a melhor maneira para prender alguém ao nosso lado é deixá-lo livre. Isso sim é atemporal e não obedece a códigos sociais ou aos preconceitos que compramos em cada época. Ficar junto por amor, mas com a consciência de que o caminho mais fácil de destruir isso é sendo tudo para quem resolveu nos escolher como membro único de uma confraria que nem sempre se traduz em felicidade.
Como tudo o mais, a sabedoria está na reserva, na contenção, naquilo que é, mas não é com certeza absoluta. Não tenho vontade de aprender as regras de um jogo diferente, até porque dá muito trabalho e o meu policial interno já recebeu demissão sumária há muito tempo. Quero ser surpreendido com rações diárias de um amor que se interessa em habitar outras casas, mas que queira voltar espontaneamente para mim.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
O olho do crocodilo
Alexandre, o Grande, está às vésperas de tomar uma importante decisão. Manda chamar uma mulher que sabe prever o futuro. Ela lhe diz que é preciso acender uma grande fogueira e ler em sua fumaça, como um livro. Mas o adverte: enquanto ela estiver fazendo a previsão, ele não deverá pensar em hipótese alguma no olho esquerdo de um crocodilo. No olho direito, tudo bem. Alexandre, então, desiste de conhecer o futuro. Por quê? Porque assim que o advertem para não pensar em determinada coisa, você passa a pensar só naquilo. A proibição constitui obrigação.” Este episódio é relatado pelo escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, na brilhante obra Não Contem Com o Fim do Livro.
Pondero sobre isso a propósito de uma conversa que tive com dois inteligentes amigos, freis capuchinhos. Falo a eles sobre quanto o celibato me parece inaceitável dentro de nossa condição biológica. Não pensar e não praticar sexo nunca, como é possível? Digo que é mais ou menos como não se focar no olho esquerdo do crocodilo. Que razões, além da já sabida estratégia da igreja de não querer dividir seu patrimônio com eventuais descendentes dos clérigos, pode levar alguém a abdicar de um dos instintos mais fortes da vida? Longo silêncio. Depois, um deles me diz: “Nós trocamos o amor de um ser pelo amor de toda a humanidade.” Bonito isso, mas um pouco difícil de encaixar dentro da prática cotidiana. E como eles fazem com a libido? Sublimam? Não, responde, há outras maneiras de deixar com que ela se manifeste sem que seja consumada num ato. Em outras palavras, ela permanece como uma potência latente, mas ainda assim, real.
Lembro das magníficas asceses que os mestres de ioga descrevem, sobre os resultados da canalização da energia erótica. Chegam bem próximos do orgasmo e depois o suspendem. Difícil, não é? Para nós, ocidentais, sempre tão estimulados visualmente pela presença incessante de corpos alheios, como estabelecer um limite entre o prazer legítimo e o excesso abusivo da carne exposta? O celibato, em circunstâncias tais, constitui-se num verdadeiro exercício de superação. Mais ou menos como deixar um doce a um centímetro da boca de uma criança e não querer que ela salive de desejo.
Na conversa que continuo tendo com meus diletos amigos, busco outras razões que possam jogar um pouco de luz não só sobre o celibato, mas também sobre a pedofilia, tema tão recorrente hoje em dia. Concordamos em uníssono: essa perversão independe deles serem religiosos ou não. Não está na abstinência a causa dessa prática. Opinião quase sempre ignorada por críticos mais afoitos.
À parte isso, não me convenço com os motivos que levam alguém a abdicar de uma existência em família – um mal que é também fonte de incontáveis alegrias. Que leitura podemos fazer do casamento se não o vivenciamos? Será que o mero testemunho substitui a vivência? Questão que permanecerá em aberto, pois cada um de nós sempre defenderá com unhas e dentes as escolhas que fez ao longo da vida. Com satisfação ou mesmo arrependimento.
Eu prefiro continuar olhando para o olho esquerdo do crocodilo. Fujo das obsessões como o diabo da cruz. Mas busco entender que a felicidade pode ser encontrada nos lugares menos prováveis. E vale lembrar que o sexo é superestimado em nossa sociedade. Nem todos se interessam tanto assim por ele. O celibato pode ser, enfim, uma visão mais elevada sobre a nossa condição de seres prisioneiros do instinto de sobrevivência. Não comer o fruto suculento que está ao alcance das nossas mãos. Isso também é um tipo de liberdade?
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