segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Público , privado e outras coisinhas

Público, privado e outras coisinhas

Estou em uma das salas de cinema do Arteplex, em Porto Alegre. Concentradíssimo no filme, mal percebo o que acontece ao meu lado. Súbito, sinto um movimento, a menos de cinqüenta centímetros do meu rosto, de inquietos dedos femininos. Olho e mal consigo acreditar. A jovem que está sentada na cadeira contígua à minha havia descalçado os sapatos e, sem cerimônia alguma, colocou os pés displicentemente sobre o espaldar da fileira à frente. Pronto, penso, agora ela vai vestir o penhoar e as pantufas, porque tem certeza de que está na sua casa. Irado, dou-lhe o tempo de dez segundos para se recompor e agir como um ser humano razoavelmente bem-educado. Ela me olha, quase sem entender e, com uma calma de fazer inveja a um monge, começa a executar o que lhe pedi. E tudo prossegue como se nada tivesse acontecido. Exceto pela taquicardia que tomou conta de mim durante esse tempo. E haja concentração depois disso.

Não é possível, penso, que continuemos a nos comportar de tal forma em espaços públicos. Afinal, não estamos encerrados em nosso quarto, sozinhos, prontos para usufruir do máximo de liberdade que nos é possível. Onde está o outro, nesta história toda? Em que momento deixamos de percebê-lo? Situações como a descrita acima tornaram-se corriqueiras, banais, a tal ponto de quase não nos chocarmos quando pessoas as praticam sem a menor cerimônia. Tudo parece ser permitido quando o individualismo extremado rege as ações.

Meia hora depois de terminada a projeção do filme, sentado num café, percebo que as pessoas estão falando cada vez mais alto. É uma algaravia infernal. Penso até que algum fato extraordinário possa ter motivado tamanha empolgação. Engano. Sou informado de que fulano se submeteu a uma cirurgia de varizes, sicrano viajou para Dubai e, "nossa, você já leu o último livro do Augusto Cury? Está maravilhoso." Tudo isso em menos de cinco minutos e à minha revelia. Emoção boa é emoção gritada, escancarada, jogada na cara do ouvinte como uma bofetada. Afetiva, mas mesmo assim uma bofetada. A vida se tornou uma colcha de retalhos, todos da mesma cor, tem razão quem disse isso. Não foi só a moda que padronizou o ser humano. Estamos agindo como macaquinhos treinados para agradar a um público que nos presenteia com balas no final do espetáculo. O importante é nos fazermos notar. Nem que para isso tenhamos que tentar transformar a nossa vida doméstica, que geralmente tem o mais banal dos enredos, numa história mirabolante e sedutora.

Emoção em seu limite máximo. Sentir aos poucos, devagarinho, sem pressa, quem ainda se predispõe a isso? É preciso ocupar o primeiro lugar da fila, pois logo atrás tem gente interessada em fazer o mesmo. Competimos compulsivamente, num exercício insano de auto-superação. Saudável, quando for uma proposta de ultrapassar os limites, mas quase beirando à demência toda vez que não nos damos conta da armadilha na qual estamos entrando. Toda e qualquer experiência pessoal pode virar de um momento para o outro enredo de filme ou de livro. Banalizamos de tal forma a arte (e a existência) que já não temos mais parâmetros para separar a confissão do trabalho criativo, propriamente dito. Tudo pode ser vendido, e bem, desde que uma boa divulgação nos faça crer que vale a pena consumir isso ou aquilo.

Ainda sonho com o dia em que alguém, ao me contar um segredo, enrubesça levemente. Parece-me muito poética a idéia de encontrar uma criatura com algum pudor, alguma reserva ao relatar fatos de sua vida pessoal. Mas, por enquanto, o que se vê é um desfile sem fim de vaidades, uma exposição desmesurada, onde o exibicionismo parece ser o único deus a ser reverenciado. A conseqüência natural disso é que estamos sempre em busca de uma vitrine. Exemplo: há poucas semanas, quatro diferentes revistas, dessas especializadas em devassar a intimidade das celebridades momentâneas, estamparam em suas capas a mesma foto, do mesmo casamento, sob o mesmo ângulo. Daqui a alguns meses, se tanto, elas usarão o mesmo espaço para noticiar a separação do famoso casal. Aproveitar o momento, a oportunidade, virou um mote que todos seguem bovinamente.

Discrição. Poucos ainda se lembram do significado dessa palavra. Caso contrário, ninguém ousaria colocar os pés descalços em cima da cadeira à sua frente. E falaríamos mais baixo e teríamos vergonha. Essa vergonha saudável que nos impede de sair por aí agarrando o primeiro que se dispuser a nos emprestar seu ouvido. Paradoxo: precisamos ser vistos, mas não vemos mais ninguém. As portas todas se abriram. Caminhamos, apopléticos, em busca de um lugar ao sol. Mesmo que este sol ofusque e deforme todas as fisionomias. Principalmente a nossa.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Posted by Picasa

Bronzeados, magros e quase felizes

Bronzeados, magros e quase felizes
A cidade está linda. Decotes profundíssimos desfilam pelas ruas. Pernas longilíneas competem entre si. E músculos, muitos músculos rasgando camisetas sempre um número menor do que recomendam os fazedores de moda. Corpos que se mostram para uma estação de sol do Saara. A pele, bronzeada, variando apenas em gradações, é o sinal inequívoco de que não existe mercadoria mais valiosa que o corpo. Perfeito. Ninguém, em sã consciência, não sente os hormônios entrarem em ebulição por esses dias. Estamos todos mais disponíveis, mais atentos às possibilidades que se apresentam. O único problema parece ser a exclusão que sofrem todos aqueles que não acreditam piamente que a felicidade se resume em intensificar a melanina, reduzir as gorduras a quase zero e ensaiar um olhar bem blasè diante da primeira tentativa de sedução. Vivemos dias em que a liberdade, obtida arduamente, se tornou o maior prêmio, uma conquista que nos enche de orgulho. Só que liberdade, assim como a entendo, é sempre fruto de uma escolha individual, que não obedece a nenhuma padronização. E o que se tem visto por aí é exatamente o contrário: todos se sentem livres na medida em que se parecem com seus pares. Quanto mais uniformes for possível usar, melhor. E isso se evidencia muito no verão, pois é preciso seguir todas as tendências, desfilar padrões que nem sempre se adaptam à totalidade e à variedade dos biotipos humanos. Chegamos muito próximos do ridículo, diversas vezes, só por não ter a coragem de impor aos outros nosso jeito de ser, um comportamento que não compactue com o que está na moda. Afinal, nem todo mundo gosta de praia e um tom mais alvo também pode sugerir sensualidade. E, convenhamos, dá pra ser feliz tendo mais do que quarenta e poucos quilos. Penso nisso tendo a clara consciência de que sou um hedonista, que aprecia sobremodo um corpo bonito, bem definido. O que me causa desconforto é ver tanta gente por aí sofrendo, achando que a vida não vale mais a pena só porque está fora dos padrões considerados normais. E quando eu digo sofrimento, não estou exagerando. Tenho uma amiga que se recusa a ir a qualquer festa só porque engordou cinco quilos. E não há argumento que a convença de que ela continua linda e, no mínimo, bem diferente dessas anoréxicas que desfilam por aí seus ossos. Sejamos magros e bronzeados, mas sem esquecer que nem todo mundo está disposto a passar por verdadeiras sessões de tortura para chegar ao ideal sonhado. Sem contar que muitas vezes é nossa saúde quem mais sofre com todo esse desequilíbrio, pois não há nada pior do que se privar dos prazeres mais elementares, sempre com uma fita métrica na mão. Quando entramos no campo da cirurgia plástica, nem se fala. Se, ao se olhar no espelho, algo estiver incomodando muito, não hesite: vá correndo a um cirurgião. Ele poderá devolver sua auto-estima. Mas, cuidado, nem sempre você ficará muito diferente da boneca Barbie. Três ou quatro cabeças masculinas (as femininas o farão por inveja) se virarão quando passarem por você. Nada mais. Donde se conclui que a sensação de bem-estar que algumas vezes sentimos não está necessariamente atrelada à proporção dos seios ou dos glúteos. O perigo de pender só para um lado é que acabamos nos viciando justamente naquilo que mais nos faz mal. E sempre com um sorriso aparvalhado no rosto, como que a dizer que encontramos a fórmula da alegria perpétua. Existem maneiras bem mais interessantes de conquistar um homem ou uma mulher. Imagine o espanto que se pode causar ao citar um livro ou um filme. Você surpreenderá, na certa. Só não vale os que estão na lista dos mais vendidos ou assistidos. Mas isso demanda disciplina interna, perseverança e, às vezes, a constatação de que nem sempre é fácil ou necessário ser o centro das atenções. Claro, que mulher não gosta de constatar que, à sua simples passagem, a construção da casa do seu vizinho sofrerá um considerável atraso, diante da paralisação de quase todos os funcionários, que estarão com os olhos colados nela? Sem esquecer as palavras de baixo calão que muitas fingem se horrorizar ao ouvir. Delícias às quais não é preciso se furtar, desde que se saiba que tudo isso é periférico, um mero entretenimento para dar mais sabor à existência. Por mim, viveríamos num eterno janeiro e fevereiro. Como é bom fechar atrás de nós a porta de casa e sair por aí, flanando, namorando com os olhos o despudor que se anuncia já nas primeiras horas da manhã. Porém, cuidado, muito cuidado. Quando aceitamos tudo como verdade inquestionável é porque dentro de nós já não há mais nenhum senso crítico, nenhuma vertente analítica. Magros, gordos, branquelos, morenos, altos ou baixos. Cada um a seu modo procura ser reconhecido, num tempo em que nos dizem que é preciso refazer tudo para ter alguma chance afetiva ou profissional. Não ceder a esse primeiro chamamento já é um sinal de que nem tudo está perdido. Sem falar que é muito interessante variar o cardápio. Afinal, photoshop só vale para página de revista ou jornal. A realidade é sempre mais imperfeita. E muito mais interessante.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Posted by Picasa
Posted by Picasa
Posted by Picasa

Beijo

Beijar
Se eu tivesse um filho, gostaria de ensinar a ele que uma das coisas mais bonitas da vida é beijar. Digo isso a propósito de algumas situações inusitadas que vivemos no dia-a-dia. Em primeiro lugar, chama a atenção o constrangimento que geralmente sentimos quando vemos duas pessoas se beijando. Se a primeira reação é ficar olhando, porque todos nós temos um pouco de voyeur, logo em seguida costumamos repudiar esse ato quando feito em público. Parece um pouco indecente, um pouco devasso. Como se a expressão do afeto viesse carregada de alguma conotação de pecado. Mais uma vez, o ranço moralista que carregamos dentro de nós, fruto de homilias e penitências tão caras às religiões, vem à tona. É difícil nos encantarmos, sem que nenhum desconforto se manifeste em nós, nos momentos em que a carícia substitui a indiferença, ou até mesmo a violência, fora do âmbito estritamente privado. Na infância, quando o mundo se apresenta como um campo infinito de possibilidades a serem exploradas, os pais costumam cobrir os filhos de afagos, tocando não só o seu rosto, mas o corpo inteiro. É tudo macio, fofo, absolutamente tentador. Esses agrados costumam ser permitidos também às pessoas mais próximas das crianças, enquanto os progenitores salivam diante dos encantos de seus rebentos. Quem dera fosse assim por toda a vida. Mas logo, logo, a gente começa a colocar cercas. Até aqui pode. Mas só até aqui. Nem pensar em ultrapassar os limites impostos pelo decoro. Não demora muito tempo e começamos a acreditar que há algo errado com quem não se contenta em usar a linguagem como a melhor expressão do que está sentindo. Aí acaba ficando tudo meio triste, sem graça. Bem rápido começamos a nos retrair e lá vamos nós para os consultórios dos terapeutas em busca desse elo perdido. Mas os adolescentes estão tão liberais, podemos pensar. Sim, é claro, só que o tipo de liberdade que conquistaram está estritamente relacionado à libido. Beijar dez pessoas na boca numa única noite é como não beijar nenhuma. O contraponto é que eles morrem de vergonha quando pais e mães se aproximam com intenções amorosas. É como se eles vivessem uma espécie de holocausto da pele. Entre os seus pares tudo é permitido. Mas somente entre eles. Eu sonho com um tempo em que homens e mulheres possam existir sem tantas amarras, conscientes de que a felicidade pode ser algo orgânico, relacionada aos sentidos, à percepção do prazer que o corpo, quando a mente está sadia, costuma nos dar. Não acredito estar clamando por Sodomas e Gomorras modernas. Pelo contrário. A anomalia está no celibato, no falso pudor, na contenção dessas explosões hormonais que nos acompanham vida afora. Beijar e acariciar é sempre bom, tenhamos nós vinte ou oitenta anos. Só que são inúmeras as conspirações sociais para que isso não aconteça. Há ainda muita repressão, muita fome para ser saciada. Quando não podemos extravasar o que sentimos, acabamos jogando todas essas pulsões no trabalho, como se ele pudesse resolver as nossas carências, a necessidade de sentir o calor de um outro ser. Talvez seja por isso que costumamos nos sentir atraídos toda vez que testemunhamos um acidente ou uma briga na rua. Melhor se deleitar com a infelicidade alheia do que ficar espiando o que os outros fazem e que nós gostaríamos tanto de fazer. Mas não temos coragem. Imagine um jornal que tivesse na capa a foto de um casal se beijando numa praça. Ou de vários casais. Será que venderia tanto quanto aquele que se rende a tragédias e assassinatos? Desconfio que a edição ficaria quase toda encalhada. Não ignoro a violência que assola o nosso cotidiano. Vivemos sob a égide do medo, da insegurança. De certa forma, nos sentimos esmagados por essa questão. Mas é bom pensar que isso não pode inibir um saudável despudor, não economizando nunca os contatos e os beijos. Em casa, no trabalho, nas ruas. Assim como quem caminha distraído e de repente se dá conta de que a morte é a impossibilidade definitiva de tocar o outro, fazendo assim com que desapareça em nós toda reserva, toda contenção. Se eu pudesse legislar sobre as datas comemorativas que constam em nosso calendário excluiria uma série delas, que me parecem meio absurdas. Mas instituiria um feriado mundial para homenagear o beijo. Com prêmios para todos aqueles que chegassem ao fim do dia aptos para uma nova maratona.