- Florentino Ariza e Fermina Daza, os inesquecíveis personagens do romance O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez, cultivaram um amor envolto em lentidão e paciência por mais de 50 anos. Neste longo período de vida, avistaram-se e falaram-se não mais do que uma dúzia de vezes. A tudo este sentimento furioso e oceânico sobreviveu. Era uma época de esperas, que se dilatava dentro de uma realidade que observava a si mesma. Cada existência ia sendo torneada num ritmo muito próximo ao da natureza. Estações para os rios e as florestas. Estações para a alma e o coração, que queimavam como uma sarça ardente. Nada se fazia para acelerar os batimentos cardíacos de cada dia. Não se pensava em abrir com violência uma fresta entre as horas, reclamando que não eram suficientes para a demanda dos fazeres. Entre o nascimento e a morte, os rituais embalavam a colheita das palavras e dos atos. E, num estado de atenção reverencial, esse casal de solenidades emocionais e olhares furtivos foi construindo, para si e para o outro, a certeza de que se pode vibrar sem tocar. Que se pode praticar a idolatria sem o medo da oxidação do desejo que as grandes paixões provocam.
Tenho pensado com frequência nesses dois seres que há tanto habitam dentro de mim. E, de maneira mais incisiva ainda, toda vez que alguém se aproxima falando ou escreve na tela do computador: “precisamos disso com URGÊNCIA”. Essa palavra tão desgastada, gritada em maiúsculas e que já não diz quase mais nada sobre o que realmente importa. Ou sobre a nossa autonomia para poder adiar algo, pespegando-lhe uma etiqueta de pouca premência. Tudo passou a ter um caráter de imediatismo e ai daquele que não interrompe a furtiva alegria do descanso para dar uma resposta satisfatória ao inquieto pedinte. Amigos e colegas me cobram, com doçura na voz: “Tentei falar contigo durante toda a manhã e não consegui, fiquei preocupado”. Com o que, então, precisamos estar disponíveis as 24 horas do dia para a necessidade alheia, tenha ela a fisionomia das relações ligeiras ou dos interesses profissionais?
Ah, como aprecio enfurnar-me na chácara, ouvindo apenas o rumor das montanhas que viverão mil vezes mais do que eu. Sorver cada minuto, gordo e macio, simplesmente olhando, certo de que não precisam de mim. Não me tragam notícias do mundo, senão aquelas anunciadas pelos poetas e pelos grandes mestres do espírito. Sei que na esmagadora maioria das vezes posso resolver o grave, gravíssimo problema no dia seguinte, no outro, ou mesmo na semana que virá. Nada é mais importante do que o cultivo do meu jardim, do que a surpresa da primeira petúnia que se abre sob o rubor do sol da manhã. Mais tarde, sim, mais tarde sei que preciso dar conta de afazeres que me permitem trocar por algumas notas de papel o alimento que me mantém vivo. Mas é apenas para isso, e em horas contadas, que devemos vender nossos talentos. No mais, apenas a deliciosa sensação descrita por Alberto Caeiro: “Sentir a vida correr em mim como um rio por seu leito. E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme”.
Não poderei, acaso, responder ao “urgente” e-mail amanhã, ou mais tarde ainda? Que haverão de querer de mim esses homens e mulheres apressados de tudo, apressados por nada? Ainda ontem esperávamos sem angústia (só com sofreguidão lírica) pela carta que demorava dias e mais dias para chegar. Que vontade de responder, na delicadeza de um bico de pena: “sim, eu o farei, mas depois, bem depois”. Incômoda é essa sensação que já não separa mais a necessidade do que é puramente a confirmação da impaciência alheia. Mas não são somente as indagações virtuais que precisam ser resolvidas com a rapidez de um relâmpago. Igual destino é previsto para os encontros. Rápido, rápido, queremos saber de Maria, de Clara e de Pedro, todos ávidos na fila de espera, antes de buscar outro refúgio: o das companhias evanescentes.
Ah, o desejo de estar quieto, bocejando ante a correria de todos. Quero ser filho da lentidão, esse doce pássaro exilado. Transformem o mundo sem mim. Em meu dicionário, a palavra urgência insiste em não nascer.
segunda-feira, 24 de junho de 2013
Por uma época de ESPERAS
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