terça-feira, 18 de dezembro de 2012



Autodefesa




15 de dezembro de 20121
Pense duas vezes antes de querer descobrir algum segredo. Você pode não estar preparado para certas revelações. Isso se chama autodefesa, o saudável mecanismo que muitas vezes precisamos usar para nos proteger de nós mesmos. O exemplo mais comum é o de casais que atropelam o seu amor em busca de uma evidência de que estão sendo traídos. Hoje em dia ficou muito mais fácil monitorar os passos de quem está ao nosso lado. Um celular esquecido sobre a mesa, o computador distraidamente aberto numa página pessoal. Pronto. Suas dúvidas se transformam em certeza numa fração de segundo. Estou sendo enganado. E agora? O que fazer com essa constatação? Poucos estão aptos a lidar emocionalmente com tal descoberta. O desejo de exclusividade nos lança em busca de provas. Mas esquecemos de perguntar a nós mesmos se essa vigilância ostensiva não vai se transformar numa espécie de veneno, num dardo que cravamos em nossa própria carne.
Este é apenas um exemplo de situação em que, no ímpeto de ter razão, buscamos desvendar certas áreas obscuras, provocando uma dor que não estava lá. Somos tentados o tempo todo a nos apoderar da intimidade alheia, sem levar em conta que há pântanos que só podem ser habitados por quem conhece muito bem o lodo. Não quero dizer com isso que a melhor solução seja ignorar o que eventualmente nos machuca. No campo amoroso, sobretudo, a sinceridade é um ingrediente essencial para a criação de laços mais efetivos. Mas não devemos esquecer que nem sempre conseguimos manter o comando do que se passa em nosso coração ou mesmo no cérebro. Então, uma pequena miopia pode ser muito bem-vinda. Costuma ser contraindicado testar nossos limites emocionais. As prisões estão repletas de pessoas que perderam o controle e a razão em casos assim.
Essa regra pode ser ampliada para diversas áreas. Quando deixamos de lado a arrogância, a pretensão de monitorar a vida alheia, passamos a viver mais confortavelmente, sem tanta tensão. Afinal, o que vemos é o resultado das ações, nunca os motivos que as geraram. E cada um pode apresentá-los quase que em ordem alfabética. Até os assassinos confessos. Tenho tentado observar mais e interferir menos. Compreender, quando o bom senso me permite, que há espaços dentro de cada um que não podem ser mapeados. Eles simplesmente estão aí e cabe a nós aceitá-los. Pensemos no processo de negação. Quando uma coisa é muito dolorosa para ser vivenciada sem anestesia, fechamos os olhos e nos recusamos a ver o que grita diante de nós. Claro que depois o arrependimento toma conta e tentamos entender como pudemos ser tão tolos, não percebendo o que era absurdamente óbvio. Mas quem sabe isso também não seja outra vertente da autodefesa. Quando não podemos suportar algo, fazemos de conta que isso não existe. Injetamos uma espécie de morfina de efeito psíquico para não enlouquecer.
Ao invés de procurar inimigos do lado de fora, primeiro é necessário investigar dentro de nós o mal que estamos nos causando. A pretensão de tudo saber, colocando uma lupa sobre cada pegada, pode resultar mais em tristeza do que em satisfação. Estamos perdidos num mar revolto que tanto mais nos engole quanto mais nos debatemos. Quando aprendemos a ficar bem quietos, buscando entender determinadas atitudes, contribuímos para o fim de muita violência emocional. Podemos e devemos erguer barricadas se o material em estudo formos nós mesmos. Ensaiar coragem, pôr limites toda vez que nos aproximamos do abismo.
Enquanto nos preocuparmos tanto com o que os outros imaginam e dizem a nosso respeito estaremos fadados à inquietação, à raiva e ao desejo de moldar nossa imagem ao que eles esperam. Nesse caso, melhor é pensar que daqui a pouco vamos todos morrer e o julgamento alheio não tem importância alguma. O que vale é como vemos a nós mesmos. E para limpar essa imagem - a única que conta, afinal – seria bom começar desde já a criar uma discreta película. Proteja-se: a salvação, muitas vezes, está em enganar a si próprio. Cada um deve descobrir a dose de verdade que consegue suportar. O contrário disso chama-se masoquismo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Autismo emocional



O cenário: um homem e uma mulher conversando no café de uma livraria. Num tom de voz um pouco acima do que se convencionou chamar de normal, discutem alegremente sobre situações corriqueiras. Estou sentado próximo e uma distância muito pequena me separa dos dois. Impossível não ouvir parte do enredo. Tudo muito prosaico. Nada teria me distraído, se não fosse por um detalhe: nenhum dos dois prestava a menor atenção às palavras que eram ditas pelo outro. Se um espesso muro fosse erguido entre eles, não teria feito diferença alguma. Eram dois surdos-mudos estabelecendo, supostamente, um diálogo. O limite verbal foi sendo dado pela discreta pausa entre um relato e outro. Tempo suficiente para o que estava na frente continuar falando. Porém, sem a mínima conexão com o assunto que havia sido comentado.

Enquanto folheava um livro, fiquei refletindo em como estamos nos transformando em autistas emocionais. Precisamos do outro simplesmente como um espelho, alguém que seja o receptáculo de nossas dores e alegrias cotidianas. Raramente alguém se dispõe a acolher com verdadeira atenção qualquer história que não lhe interesse pessoalmente. Todos nós fazemos isso em diferentes graus. E o motivo é sempre o mesmo: não me diz respeito. Sempre foi assim e sempre será. Mas talvez estejamos ultrapassando o limite do permitido para que as relações entre as pessoas continuem recebendo esse nome: relações. O que vemos por aí é uma série de indivíduos enclausurados dentro de seu microuniverso, tendo a certeza de que o que dizem é de interesse geral e irrestrito.

O simpático casal de amigos desdobrou em diversos atos a ação da peça que estavam encenando. Como eu estava na plateia, achei que seria educativo acompanhar tudo, do início ao fim. Em alguns momentos o gancho para uma nova frase era, sim, o final do assunto em pauta, mas continuava sempre dessa maneira: “Pois então deixa eu te contar o que aconteceu comigo.” Acredito que nenhum dos dois sofria de asma, pois teriam ficado sem fôlego já nos primeiros quinze minutos. O que estará nos levando a esse tipo de comportamento? É bem provável que, depois de sete ou oito horas diante de uma tela de computador, sintamos uma necessidade irrefreável de contar o nosso modesto dia para quem a isso se dispuser.

Mas há também outro elemento a ser levado em conta. Somos incitados constantemente a olhar para o próprio umbigo. Assista TV durante algum tempo e você verá como as propagandas e muitos programas autorizam e até promovem esse tipo de egoísmo. Altruísmo e generosidade são raramente distribuídos no mercado. Em primeiro lugar vem sempre a minha satisfação. Depois a gente vê como fica o resto. E isso acaba se refletindo na maneira como vamos construindo as nossas teias afetivas. Repare: mesmo quando estamos em casa, é comum nos trancarmos no quarto, distante dos demais para, finalmente, podermos entrar em alguma rede social. Agregue-se a isso o fascínio pelo celular e temos o perfil de uma geração que já não vê com bons olhos os contatos tridimensionais.

É difícil abdicar da importância que nos atribuímos. Mais difícil ainda é compreender as necessidades e carências das pessoas próximas a nós. Porém, se não fizermos um esforço para caminhar no sentido contrário, estaremos fadados a continuar sendo portadores desse tipo de patologia. O que pode nos ajudar a quebrar essa postura é colocar uma mordaça imaginária na boca antes de despejar diante do primeiro passante os nossos pequenos e comezinhos dramas. Perceber que quase nada do que entronizamos num altar é realmente importante. Mudar o foco. Ou, numa perspectiva mais radical, procurar ajuda terapêutica, se persistirem os sintomas.

Toda a natureza, exceto a do homem, se inclina para o silêncio. Sejamos também nós interlocutores que sabem, com certo grau de sabedoria, ouvir o que aflige quem está ao nosso lado. Que nossa presença não seja percebida apenas fisicamente. Existem diversas maneiras de nos desconectarmos do nosso pequeno eu. Vamos continuar escrevendo nossa história pessoal sem tanta estridência. Caso contrário, naufragaremos numa solidão repleta de testemunhas.