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- Depois de uma série de pequenos e turbulentos desastres domésticos, meu amigo desabafa: “Só pode ser olho grande, inveja, sei lá. Só isso para explicar tanta coisa ruim acontecendo na minha vida.” Fazemos uma rápida retrospectiva e descobrimos que esses incidentes estão muito mais relacionados a uma sucessão de descuidos, ao acaso, do que a algo maléfico planejado por terceiros. O mundo não conspira contra nós, acredite. Fiquei com a impressão de não tê-lo convencido totalmente, embora suas convicções talvez tenham sido sutilmente arranhadas. No caminho para casa, pensei no quanto esse tipo de crença é recorrente. Poucos escapam dessa armadilha. Não sou um dos felizardos, embora em diversas circunstâncias eu consiga trocar o embotamento por algumas doses de consciência. Mas nem sempre. Quando algo dá errado, é mais fácil culpar o vizinho, o suposto inimigo, o desafeto. Assim nos isentamos da responsabilidade. E há todo um entorno social que endossa essa postura. Aliás, há um mercado bastante lucrativo que estimula esse tipo de pensamento.
Algo anda mal com você? Recorra a um pai de santo, a uma cartomante, faça uma macumba. Reze. Pague para sair dessa, se preciso for. Nada contra. Pode ser um recurso legítimo, mas o efeito se parece mais com o de um placebo. O que a gente não costuma fazer é acessar o nosso arquivo mental e tentar descobrir onde está a falha, a desconexão. Porque é certo que quando tudo parece desandar as causas estão bem mais próximas do que imaginamos. Mas é difícil fazer esse mapeamento e assumir culpas. Mais: admitir certos boicotes, que costumam resultar da fragilidade típica de quem se habituou a se sentir vítima de tudo e de todos. As palavras redentoras são essas: os outros. Com isso não preciso fazer nada além de lamentar o meu infortúnio, pobre ser chicoteado pelo destino. E não importa o tamanho da injustiça que sofremos. Na contabilidade final, permanece a certeza de que não merecíamos passar por isso.
Talvez a porta de entrada para o mundo adulto se encontre exatamente aí: na percepção de que somos os artífices da maioria das coisas que acontecem conosco. É difícil traduzir isso através da linguagem. Pode ser que a expressão correta seja simplesmente essa: assumir nossos atos. Mesmo quando os efeitos são desastrosos e os fatores que os provocaram pareçam desconhecidos. Ao ampliar as investigações, descobrimos que bem e mal são conceitos que não transcendem o nosso próprio eu. E é dentro do movimento sutil de cada dia que vamos encontrar respostas. Ou, pelo menos, uma tranquilidade que exonere as culpas. E a pior delas é a terceirizada. Os pilares de muitas religiões são colocados exatamente nesse terreno. E quem sou eu para negar o conforto que conseguem dar a tantos órfãos de um sentido para a existência.
Permanecer de olhos abertos não é fácil. Mas se fechar em dogmas equivale a colocar um par de algemas em si mesmo. Até somos capazes de continuar caminhando, mas uma boa parte da nossa liberdade foi perdida. Eu continuo me deseducando. E nesse processo está a vontade de recuperar alguns campos que não estão definitivamente contaminados pela lógica e pelos precários cinco sentidos. Existe algo lá fora, afinal? Não sei, mas me agrada a ideia de conseguir suportar esse hiato de solidão, ancorado na coragem e no desafio. Continuo caminhando no deserto, mas com a convicção de que uma terra prometida poderá ser avistada algum dia.
Voltando ao amigo perseguido por forças ocultas, posso dizer que hoje, passados alguns meses, uma camada muito tênue de comprometimento já se torna perceptível nele. Disse-me que chama isso de efeito bumerangue. De alguma maneira, as coisas voltam. Há uma circularidade impressionante em tudo. E para descobrir isso, não recorreu a nenhum expediente de ordem espiritual. Ele simplesmente está aprendendo a difícil arte da autoanálise. Nem sempre é muito bonito o que encontramos nessas escavações. Mas é a única maneira de parar de gritar contra Deus e o mundo sobre aquilo que nos acontece. Virtude e recompensa nem sempre andam juntas. Superstição e fracasso, sim.
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Arquivos mentais
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