Apego-me como um náufrago a cada vislumbre de alegria
Amar o seu destino, amar o que existe em você. Nesta perfeita expressão que encontramos na obra de Nietzsche está circunscrito todo um itinerário de desenvolvimento do nosso ser. Isso me remete as tantas inquietações que nos assolam, aos desejos diversos que não coincidem com o que somos, com o que fazemos. Essa desordem interior – um desassossego à maneira de Fernando Pessoa – faz com que nos descuidemos do real, do que está desenhado na borda de cada dia.
No descontentamento que se vê nos olhos de muitos é provável que esteja presente uma incapacidade para se adequar ao real. Como se o que estivesse acontecendo ao nosso redor fosse sempre mais interessante. Só que os que estão próximos não raro olham para nós com a mesma inveja. E assim, querendo ser tudo, menos o que somos, acabamos por perder a substância que nutre a nossa vida. Que muitas vezes guarda a aspereza dos limões. Que dói e machuca e deixa em nós uma vontade de alheamento. Mas que passa, passa. A felicidade não pode ser apenas um breve intervalo em meio a toda essa fúria que estilhaça a alma.
Quero que minhas crenças sejam de outra ordem. Não recuso o percalço, a doença, a fragilidade. Mas me apego como um náufrago a cada vislumbre de alegria. Não à comemoração ritualista, essa que vem carregada de obrigações, de datas previamente agendadas. O que em mim é motivo de festa pertence ao pequeno, ao acidental. Se há um destino, um fado que seguimos até o esgotamento, eu desconheço. Cada vez mais creio no mistério do acaso. Por isso traço para mim uma rota que vai sendo alterada constantemente. Porque sei que sou o resultado feliz ou amargo de um encontro, um acidente de percurso, uma gratificação que nasce simplesmente por estar em disponibilidade.
Amor fati. Amor ao que é concreto, tangível. Sou uma esfera de possibilidades, paisagem do que fui, esboço futuro do que serei. Tenho sede de tudo que é palpável, mesmo que a imaginação, aqui, também tenha um papel importante. Não sonho com o destino do outro. Já estou na idade em que preciso me conformar com minha própria fisionomia. Sem mágoas, sem ressentimentos. Perdi e ganhei. Os que se aproximam de mim e os que partem rapidamente nada mais fazem do que continuar a esboçar um pouco mais da minha personalidade. Tudo isso parece ser uma brincadeira. Por vezes terrível, por vezes adorável.
Tenho esse frêmito que quer mais e mais vida. Gosto da filosofia porque ela me expande, mostrando não o que sou, mas o que ignoro. Tento fugir cada vez mais das conclusões. É tão perigoso acreditar que se saiba sempre as respostas. Melhor ir dando as mãos a quem está do nosso lado, ir tateando. Juntando pedaços que talvez algum dia possam nos dizer se há um significado, um sentido para esse aparente caos. A madureza cobra seu preço, mas também nos dá a percepção de tudo o que se desmancha sem que a gente perceba.
Eu quero mais tempo. Mas não um tempo rugoso, que me deixe ressentido. Busco a coragem para rever algumas lições. Sei que não conseguirei me graduar. Mas tenho a fome necessária para continuar abrindo todos os cadernos.
sábado, 30 de abril de 2011
Amor `FATI´
terça-feira, 26 de abril de 2011
E ainda sobra tempo
Sentimo-nos valorizados cada vez mais pela ação
Existe uma equação simples para tentar decifrar esse grande mistério da falta de tempo na vida das pessoas. É só parar e fazer a conta das horas desperdiçadas em atividades completamente inúteis. A relação é tão vasta que nem vale a pena fazê-la. Mas pode-se tentar uma tomada de consciência a partir de acontecimentos do nosso cotidiano. Você conhece uma situação que nos deixa com mais culpa do que não fazer nada? O corpo pode até estar em estado de repouso, mas a mente viaja quilômetros e mais quilômetros, sofrendo por tudo que deveria estar fazendo e não faz. Provavelmente seja por isso que muitos de nós damos um jeitinho de levar o notebook para a praia ou o hotel da cidade em que vai tirar férias. O ócio passou a ser o oitavo pecado capital dos nossos dias. Em gravidade, deve estar entre os primeiros.
Sentimo-nos cada vez mais valorizados pela ação. Empilhamos atividade sobre atividade e, ao fim do dia, a descoberta do não cumprimento de uma meta causa grande sofrimento. Contemplar tornou-se obsoleto, coisa de quem tem alma de poeta. Poeta extraviado. As estações passam por nós como se fossem todas da mesma cor, da mesma textura. É claro que muitos se entregam a essa compulsão porque há uma cobrança permanente pairando no ar. Só os melhores, os mais ágeis e espertos sobrevivem no mercado. E isso acabou virando senso comum – multidões andando por aí em busca do que fazer.
Já há alguns anos tenho adotado um olhar diferente. Tento cortar tudo o que posso e reduzir a vida a certos núcleos que me parecem vitais. Todos reclamam que não sobra uma mísera hora diária para a leitura. Mas sobram três ou quatro para assistir televisão. Os pais reclamam que os filhos quase nunca estão em casa. Mas eles muitas vezes passam mais tempo diante do computador do que os filhos. Namorados trocaram a intimidade física por mensagens online. Um breve monitoramento para saber onde estão parece dar conta de qualquer insatisfação amorosa. E todos convencidos de que é assim mesmo e não há nada o que se fazer. Mas há, sempre há.
O desejo exagerado de obter sucesso nos enredou de tal modo que acabamos aceitando tudo como natural. E com justificativas racionais e fundamentadas. Recusar passou a ser uma falta de educação que poucos se permitem. Participam de tudo, mesmo estando presentes só fisicamente, loucos para voltar pra casa e se livrar do evento chato. Está aí uma expressão que não sai da nossa boca: “Eu não queria ir, mas era um compromisso irrecusável.” E vamos, totalmente sem vontade, cumprir mais um ritual destituído de prazer.
Tenho recuperado umas boas horas depois que aprendi a dizer não. Existem parcerias, existem amizades e existem necessidades profissionais e afetivas. Tudo certo. Mas esse excesso de cuidado para não magoar ninguém está nos transformando em seres amargurados, queixosos. Lembremos do verso de Rimbaud: “Por delicadeza, eu perdi minha vida.”
Consigo fazer muitas coisas e ainda sobra tempo. Resultado de algumas escolhas conscientes. Um exemplo? Na minha casa ninguém leva trabalho que ficou pendente durante o dia. Com a TV quase sempre desligada, conversamos, lemos, assistimos filmes, saímos para jantar. Ou simplesmente ficamos preguiçosamente deitados no sofá, falando ou em silêncio. Isso se tornou tão importante que já não questionamos mais se é certo ou errado. É simplesmente a nossa maneira de ser feliz. E de reclamar menos.
Daqui a pouco teremos que devolver tudo, como nos ensinam os mestres budistas. Melhor pensar na vida como uma brincadeira. E se divertir. Estamos ficando velhos muito cedo. E sérios. E responsáveis. E resmungões.
Estou tentando diminuir o peso das malas que carrego. Não quero perder meu trem para Pasárgada. Sem poesia já é noite. Corremos o risco de morrer sem descobrir que a luz era a própria paisagem.
sábado, 9 de abril de 2011
DESEJOS atendidos
Sonho satisfeito, frustração à vista
Volta e meia ponho-me a pensar nesta frase do escritor Oscar Wilde: “Só existem duas tragédias na vida de um homem: a primeira é não conseguir o que ele mais deseja; a segunda é conseguir.” Por que isso é tão recorrente? Quando realizamos um projeto, muitas vezes precedido de grande expectativa, logo, logo, derrapamos na melancolia. É como se um dique tivesse estourado e não conseguíssemos mais represar a água que tudo inunda. Como se o tamanho do nosso sonho não coubesse mais dentro da vida real. E isso não se constitui numa exceção ou numa espécie de vício de almas desocupadas. Ao contrário, esse sentimento de inadequação entre o desejo e a sua realização assola até as pessoas mais pragmáticas. Essas que depois do primeiro gole do café da manhã saem para a ação, numa renovada tentativa de mudar a composição do mundo.
Difícil entender por que somos assim. Vejo essa atitude em quem tem fé e em ateus, em gênios e em pessoas simples, em crianças e em velhos, em tristes e em felizes com a vida. Sonho satisfeito, frustração à vista. Constato isso até nos casais que antes juravam amor eterno pelos cantos da casa. Observo também no homem que empenhou a vida para ter em sua cama o corpo da mulher que desejava ardentemente. E no empresário casmurro que por tanto tempo empilhou dinheiro no cofre, escondendo-o com zelo. Quando não fica um resíduo, uma ponta do não realizado, é sempre a mesma tragédia. E o sussurro discreto que chega aos ouvidos mais atentos: “Então, foi pra isso que eu lutei tanto?”
É na esperança que firmamos nossos propósitos, mas como uma espécie de carta que lançamos ao mar na secreta expectativa de que ela jamais seja encontrada. O fato de escrevê-la já contém a resposta. Às vezes parecemos aquele menino mimado que atazana a vida dos pais para ter o mesmo brinquedo do colega de aula. Esse brinquedo que se tornará irrelevante assim que estiver em suas mãos. O mais bonito é sempre o inalcançado. Amorosa espera que regula o ritmo do coração e o põe em disparada. Eterna busca pelo doce trancado na vitrine da confeitaria.
Uma pista para entender isso. Quando obtemos algo, quase imediatamente passamos a descuidar do que antes nos dava a sensação de ser tudo o que precisávamos. Deixamos lá, atirado num canto, esquecido como uma vassoura de cerdas gastas. Amores terminam assim, amizades idem. Como admirar o que está (e pensamos, erradamente, sempre estará) ao alcance de nossas mãos? Quando a morte interrompe essa pretensão tão humana, saímos pelas ruas ganindo como um cão açoitado pelo passante insensível. Perder, ganhar, saber como tudo é frágil. Consciência relâmpago que não apaga o nosso andar rumo a tantas insatisfações. Talvez seja bom pensar um pouco antes de pedir algo. Os deuses, desejosos de se divertir com nossa trôpega ansiedade, podem nos conceder o que mais queremos.
Portanto, reflita duas vezes antes de percorrer as contas do seu rosário particular. Não peça só para alcançar, mas a renovação do desejo também. Não nos dizem os especialistas que a depressão costuma ser quase sempre a falta de vontade em continuar querendo, a paralisia diante do espetáculo do mundo? Olhar, olhar e se sentir imensamente enfastiado, com o rosto virado para o lado, afundando-o no travesseiro – tal é a nossa condição no mais das vezes.
São de Santa Teresa essas lúcidas palavras: “Mais lágrimas são derramadas por súplicas atendidas do que pelas não atendidas.”
Suplique menos, portanto. Alguém pode ouvir e atendê-lo.