Alma livre
A vida em sociedade desfigura nossa fisionomia original
Uma das coisas que define um grande homem de outro que apenas se deixa viver é a capacidade de estar além do que os outros pensam dele. Mais: de manifestar uma certa indiferença em relação a tudo que o toca. Passamos a maior parte do tempo colocando sob viés analítico atos e pensamentos que não coincidem com os nossos. E nos atormentamos excessivamente com a imagem que queremos mostrar para o mundo.
Poucos de nós têm a coragem de se revelar como realmente são. Obedecemos costumeiramente às expectativas que jogam sobre nossas costas. O atrito é minimizado e os elogios tendem a crescer, mesmo que à custa da morte das inclinações naturais. A vida em sociedade desfigura nossa fisionomia original. Acabamos quase sempre reagindo, não obedecendo às motivações de nossa alma. O olhar alheio incomoda, pressupõe um julgamento permanente do que somos ou fazemos.
A rebeldia em relação ao estabelecido cobra o seu preço. Padronizar é a ordem do dia. É com isso que o mercado conta: com a lista dos maiores e melhores, com a nossa preguiça em questionar essas pesquisas que determinam o que todos devem gostar ou repudiar. Acabamos nos acomodando ao senso comum, a discretos indicativos que nos dizem para seguir na direção em que todos estão indo.
No entanto, a liberdade vai pelo caminho oposto. Manter esse olhar de distanciamento não só no tocante ao que sentimos, mas também ao que nos cerca, é o melhor antídoto para evitar a corrupção dos gostos pessoais. Sem contar que tira dos ombros o insuportável peso de ficar se preocupando com tudo o que não pertence ao nosso credo pessoal.
As coisas são o que são, sem precisar obedecer aos nossos anseios. Ficamos chocados quando os outros agem ou são diferentes de nós. Oprimidos por um eu que afunila e deforma essa visão, dificilmente percebemos que nada mais são do que manifestações de um mesmo desejo, um poema escrito em ordem diversa, mas ainda assim um poema.
Desfazer-se dessa perspectiva limitadora é como atirar para o alto e para longe todas as ordens de comando que fomos recebendo desde que nascemos. Penso aqui em Rimbaud, o poeta rebelde que não quis se filiar a nenhuma escola, que não negociou sua juventude em troca do conforto que o acomodamento burguês lhe oferecia. Passados mais de 100 anos, ainda podemos beber dessa fonte que exala um perfume que nos atordoa e humilha, porque revela o tamanho da nossa covardia.
Quase nada tem a importância e a gravidade que lhe atribuímos. Cada um faz o que pode no limite de sua capacidade. Por que nos perturbarmos tanto diante do que passa? A crítica em excesso só destrói, nos torna amargos e ressentidos. Sinto um grande cansaço quando me deparo com alguém descontente com tudo e com todos. A época em que vivemos não é melhor e nem pior que tantas outras. O que fazemos é usar ferramentas diferentes, mais sofisticadas (embora muitas vezes falhas) para nos comunicar.
Gostar exige mais de nós. Exige deixar de lado esse constante falatório que esteriliza as relações. O deserto pode ser aqui. Mesmo em meio a tantas construções, tanto barulho, tanto movimento.
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