sábado, 24 de abril de 2010
Observe-se, mas nem tanto
Observe-se, mas nem tanto
Algumas pessoas passam tanto tempo olhando para si mesmas, analisando o que lhes acontece, tentando traduzir minuciosamente cada ato, cada pensamento, que simplesmente se esquecem de viver. É inegável a contribuição que a psicologia trouxe, os vislumbres que ela nos forneceu para a elucidação desse campo obscuro onde nascem as emoções. Somos seres contraditórios, carregados de intenções que não costumam ser sondadas em sua significação real. Mas, convenhamos, passar a maior parte do dia na frente do espelho é desviar o foco do que realmente conta.As primeiras impressões muitas vezes coincidem com o que se passa no interior das pessoas. Embora, de fato, nos bifurquemos em inteligência emocional e racional, esse cansativo debruçar-se sobre o próprio eu costuma tornar-nos chatos e autorreferentes. Algumas coisas são mais simples do que parecem. Sim, porque a complexidade vicia e contentar-se com a primeira camada passou a representar, equivocadamente, a escolha dos que não têm muito a oferecer.
Nas relações cotidianas, tenho o bom senso de não segregar meus amigos pelo grau de cultura ou inteligência, necessariamente. E sempre me surpreendo com a sabedoria que encontro em quem teve que se embrenhar pela vida de maneira direta e dolorosa. Nem tudo tem uma significação secreta, e o que estampamos no rosto pode ser o melhor Raio X do que está do lado de dentro. A serenidade é o prêmio para quem não se leva tão a sério. Até porque, na ordem natural do mundo, ocupamos um espaço tão pequeno que é pretensão demasiada acreditar que precisamos nos submeter a exames constantes. Sinto grande prazer em aderir a essa visão menos pretensiosa da existência. Não é sempre que vale a pena vasculhar o que carregamos na mochila. Pode-se perder o prazer da viagem ao descobrir algumas coisas que não gostaríamos que estivessem lá.
Muitas vezes é na simplicidade que está a verdade. Tenho amigos que passaram boa parte da vida num divã. Alguns enfrentaram seus monstros e saíram vitoriosos. Outros me parecem agora até mais tristes, com a alma emaciada. É uma pena que às vezes o sol nos seja subtraído, quando fazemos esses grandes mergulhos. Deveria ser sempre possível conciliar as duas coisas: mas onde encontrar o equilíbrio entre a visão microscópica e a capacidade de sustentar a alegria?
Isso vale também para as relações amorosas ou de amizade. Muito discurso potencializa essa ginástica amorosa que é, ao fim de tudo, o que se acaba fazendo quando queremos complicar demais. Silêncio e intuição são duas ferramentas que nos ajudam a seguir em frente, longe do emaranhado que é a mente de cada um - embora não seja fácil resistir à tentação de nos entregarmos a fórmulas que criam a ilusão de que somos melhores do que aparentamos.
O perigo está em não renovarmos nossos votos de confiança no poder do esquecimento. A vida acontece de maneira tão espontânea que seria bom desviar mais o olhar para o outro. Passageiros do acaso, de nada vale ficarmos presos ao que causa dor ou contentamento. Os melhores momentos são os que passamos distraídos de nós mesmos. Pensar em demasia nos salva e nos condena, ao mesmo tempo. É um alívio descobrir, como nos disse Fernando Pessoa, que “o único sentido íntimo das cousas é elas não terem sentido íntimo nenhum”.
sábado, 17 de abril de 2010
Talvez
-
Traduzir o mundo com avidez é, não raro, equivocar-se
Aos poucos, quase sem perceber, já não deixamos nossos olhos repousarem sobre coisas e pessoas. Não mais a sabedoria da espera. O recolher-se em si mesmo e aguardar. Em um de seus romances, o escritor Philip Roth faz uma personagem dizer: “Não há vida sem paciência.” E vamos encontrar nos diários de Kafka semelhante observação: “Pela impaciência, o homem foi expulso do paraíso.” Traduzir o mundo com avidez é, não raro, equivocar-se. Em todas as tradições religiosas se ensina que o apaziguamento da alma requer tempo. Tempo e boa vontade.
Quem se propuser a fazer qualquer exercício de meditação perceberá quanto é difícil olhar para dentro de si mesmo, em busca de uma observação silenciosa e profunda do que se passa na mente. É ela que nos rouba a paz. Queremos colher tudo antes do tempo. Gostamos dos atalhos porque eles são a escolha dos mais espertos, dos que acreditam que a agilidade é nossa cúmplice. Na verdade, eles solapam o processo que gera o entendimento.
A rapidez em julgar, igualmente, faz com que nos equivoquemos com frequência. Tomados pelo desejo de sermos os primeiros, vamos transformando o dom da reflexão num instrumento de segunda categoria. Embora eu não seja um homem dado a rituais, interesso-me pela maneira como os monges vão atravessando seus dias. Há qualquer coisa neles que se alonga, que se desdobra, protegendo-os da leviandade de um cotidiano via de regra comprometido com a eficiência, com a pressa. Eu os admiro, mesmo me sentindo distante deles, pois raramente sou tocado pelo sentimento de que tudo está de acordo, que não é preciso fazer nada para que a roda da vida siga o seu destino.
Um livro que se lê ao sabor das horas, uma doença que nos debilita e testa nossa capacidade de sermos meros expectadores, o acolhimento das derrotas e a sensação quase sobre-humana da chegada de um novo amor. Como damos conta dessas vertigens? As grandes aventuras interiores exigem de nós paciência e denodo para que possamos nos debruçar sobre elas com serenidade. Mas parece que se não fizermos tudo simultaneamente perderemos alguma coisa. Comemos o fruto sem lhe sentir o gosto, pois o que importa é chegar logo ao caroço.
É preciso aprender a esperar pelos resultados. O bom pode se transformar no ruim e vice-versa. A sucessão de fatos e estados emocionais nos mostra que o essencial escapa quando nos precipitamos. Com a respiração curta e os gestos afoitos, sempre nos arriscamos a interpretar de forma equivocada. Muitas vezes pensei estar perdendo, e no entanto... Da mesma forma, o espetáculo de certos ganhos revelou-se enganoso. A resposta mais verdadeira nunca é instantânea.
Como o velho sábio budista que, interrogado sobre algum fato que o tocava diretamente, se achava que algo era bom ou ruim, respondia: “Talvez...” Porque é sempre assim. O que vemos está próximo demais, comprometido com interesses que não obedecem ao sentido do ser. Para mim, a verdadeira postura filosófica é sentar-se calmamente, deixando que tudo passe através. Não dentro de nós.
Pode ser que sim, pode ser que não. Só mais adiante saberemos.
sábado, 10 de abril de 2010
A arrogância,esse disfarce
Máscaras, quem não as usa? Falo isto a propósito de um comportamento que se repete cada vez mais. Estamos nos tornando muito arrogantes. Os avanços tecnológicos e as conquistas da medicina deixaram em nós resíduos de prepotência. Parece que uma voz está sempre a nos dizer: você pode ir mais, ir um pouco mais. Os limites desapareceram diante de nossos olhos. Num mundo sem paredes, onde qualquer território pode ser visitado, é até compreensível que percamos a noção da própria finitude.
Há uma ordem espalhada no ar: é preciso competir. Por conta disso, quem conquistou algum cargo de destaque na área profissional em que atua acaba solapando seus princípios, às vezes solidamente adquiridos na infância, unicamente para não perder o posto. Que é de nosso tempo crer que valemos por essas etiquetas invisíveis que parecem coladas nas costas: gerente, diretor, coordenador geral. Tão pouco, meu Deus! O resultado disso é um bando de seres desesperados, buscando unicamente uma ascensão social que se desmancha ao sabor do interesse de terceiros.
Vamos aos arrogantes. O perfil clássico é sempre o mesmo: peito estufado, nariz empinado, frases curtas, linguagem cortante. Do alto de seus dois metros, dois metros e meio, olham diretamente para nós – mas é um olhar vazio, sem sentimento. Pode-se pensar que aí está alguém seguro, que conhece tudo e tudo sabe fazer. Enganamo-nos. Geralmente usam essa máscara para disfarçar uma imensa insegurança.
Reencontrei, há alguns dias, uma amiga de outros tempos. Naquela época, valia-se de sua beleza física para conquistar o que queria. Era uma arma poderosa e nunca deixou de usá-la, com resultados invejáveis. Achava os estudos maçantes e tinha inteligência mediana, quando muito. Mas como conseguia se vender bem, essa minha amiga! Hoje eu sei que por trás daquela aparente rocha escondia-se uma mulher incapaz de acreditar em si mesma e nas inabaláveis qualidades que sempre reiterava ter. Passados os anos, percebo que algo mudou. Ela já se dá conta de que a partir de agora precisará estabelecer suas conquistas em outras bases. Mas, inevitavelmente, ainda persiste aquele seu jeito que parece dizer o tempo todo: “vejam como eu sou especial, não há a menor possibilidade das coisas não darem certo comigo.” Só que, no meio dessa frase, quase se pode ouvir um disfarçado pedido para que, por favor, se creia no que ela está dizendo. Um bom terapeuta faria uma festa com sua história.
Disfarces, tantos disfarces. Mesmo percebendo quando eles estão sendo usados descaradamente, é difícil aceitar a ideia de que estão aí para encobrir uma espécie de deficiência de caráter. Rezam os ensinamentos mais básicos da psicologia que, por trás de tudo o que vem à tona, existe uma quantidade muito maior de pensamentos e desejos não manifestos. Usamos o autoengano o tempo todo. Por isso, na próxima vez em que você deparar com alguém autoritário, cheio de pose, pense que essa pessoa merece mais a sua compaixão do que a sua ira. É difícil, com certeza. Porque quem é vítima de um desses ditadores frustrados precisa ter um controle emocional quase sobre-humano. Consolo-me sabendo que deve ser exaustivo manter essa fachada o tempo todo. Mandar, mandar sem intervalo, sem descanso. Obrigado. Prefiro pertencer à confraria dos que também sabem obedecer.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Desencontros
-
Você pode realizar bons estudos sociológicos frequentando bares, botecos e afins. É lá que costumam se reunir grupos de homens e mulheres, buscando se divertir. Separadamente. O jogo de sedução, felizmente, corre solto. Mas há algo de errado nessa história. Tenho amigos que, apesar de saírem muito à noite, continuam reclamando da solidão.
Como traduzir isso? Parece que a festa termina quando a porta desses estabelecimentos se fecha. O máximo a que se sentem autorizados é fazer parcerias provisórias. Que podem se estender até a manhã do dia seguinte, mas não muito além disso. Estou falando de pessoas entre trinta e cinco e cinquenta anos, média de idade que se encaixa nesse perfil. O fato é que, apesar de toda a liberdade conquistada, ainda há muitos entraves dificultando o caminho.
Mulheres buscam companheiros que as ouçam, que guardem algum resquício de sensibilidade, aliado a uma boa dose de testosterona. Para elas, a idade desses eventuais futuros namorados não tem muita importância. Seu olhar está menos atrelado à rigidez muscular e mais a um desejo de partilhar o cotidiano – coisas bem simples, como uma ida ao cinema, ao supermercado, jantar num restaurante. Filhos já não são uma premissa básica para que fiquem juntos. A perspectiva muda com o passar do tempo e os valores adquirem nova configuração.
Homens são mais predadores, sucumbem diante da beleza física, transformando o caráter e a personalidade da eventual presa em algo muitas vezes secundário. Entre risos de viés e pequenas investidas que demandam uma certa capacidade de aceitar a rejeição, seguem cumprindo um papel que lhes foi destinado desde sempre. Muitas vezes essa aproximação é feita mais de equívocos do que de acertos. O medo de iniciar um vínculo mais profundo os afasta de mulheres que se posicionam com segurança em relação ao que querem. Dividir poder ainda assusta, quando nos acostumamos a dar a palavra final em quase tudo.
Eles querem, elas querem, mas o encontro não acontece. Se acontece, é meramente físico, tendo alguns desdobramentos nem sempre felizes. Ou seja, todos empenhados em viver aos pares, mas amargando tantas frustrações que acabam se sentindo com o prazo de validade já vencido. Quem está fugindo de quem? Como no excelente filme Corra, Lola, Corra, passam a maior parte do tempo em estado de angústia, atravessando todo tipo de obstáculo, sem perceber que o final feliz pode depender de um pequeno gesto, um caminho diferente que se tome. A ousadia de parar e reconhecer quem nos interessa ou quem devemos descartar.
É reconfortante constatar que o universo social tem facilitado consideravelmente as aproximações. Talvez pequenos ajustes pudessem evitar uma boa dose de tortura emocional. Ainda é possível encontrar seres que habitam o mesmo planeta que nós. Menos taquicardia, menos voracidade ao virar o pescoço feito um periscópio. Não é fácil, claro, quando percebemos que o relógio biológico pode se transformar num inimigo. A velha dualidade sempre existirá, mas quando ela se converte numa arma só aumenta a tristeza que tem recoberto de sombras o olhar de tantos.
Que a noite seja mais do que um duelo. Seja o reconhecimento de que a fome é a mesma para todos os que buscam.
-
Eles querem, elas querem, mas o encontro não acontece