Quem transgride no pequeno, transgride no grande. É só uma questão de oportunidade. Ceder uma vez significa que cederemos outras, porque é tentador sentir-se livre para fazer o que se quer. Com essa exacerbação patológica da individualidade, quase tudo se tornou permitido. Não há mais o muro, a presença do outro, o respeito mínimo, que ajudam a conter a ânsia de nos apropriarmos do mundo. Quem convive socialmente sabe do que estou falando. Espaços públicos se transformaram em laboratório onde podemos impor nossas vontades. Eu quero. Eu gosto. Eu preciso. E, principalmente, eu posso. Esse é o credo dos nossos tempos.
Tão pouco se vê o olhar debruçado sobre a necessidade alheia, o giz demarcando a linha imaginária até onde podemos ir. Com a nova pedagogia incitando os pais a não frustrar os filhos, a ceder a todos os seus caprichos, esbarramos continuamente com pequenos reizinhos gritando ordens em seus tronos de plástico. Voluntariosos, começam quando ainda estão com o bico na boca. Vá a um supermercado e talvez você conclua que não estou exagerando. É aí que começa a deformação, o comportamento equivocado, a sensação de que estamos autorizados a fazer quase tudo o que temos vontade. Estranho paradoxo: por um lado, câmeras nos vigiam vinte e quatro horas em quase todos os locais por onde nos movimentamos; por outro, uma sensação de invisibilidade nos autoriza a transgredir. A certeza da impunidade é o aval de que precisamos para seguir em frente.
Limamos a palavra ética até ela virar pó. Moldamos nosso comportamento a partir de uma moral que se ancora na circunstância. Nosso instinto de autopreservação está se exacerbando, uma vez que pôr os pés na rua se tornou temerário. Dentro dos carros estão super-heróis em fúria, exercitando seus poderes. Regras – para que segui-las, se o guarda da esquina está distraído? Lembremos do que disse Epicuro: o verdadeiro homem será íntegro mesmo quando não houver testemunhas.
Ninguém está a salvo de ser contaminado por essa arrogância. Na medida em que vamos cedendo, em que atos ilícitos miúdos ocupam o nosso cotidiano, mais e mais aumentamos a possibilidade de roubar, trair, mentir, matar. Tenho medo. De mim e dos outros. Preciso cada vez mais estabelecer limites. E me testar dentro desses limites.
No discurso somos todos ótimos cidadãos, pais exemplares, funcionários corretos. Assim nos preservamos de uma autocrítica mais profunda. O perigo está em dar o primeiro passo. Não haverá mais governo e nem fronteiras que nos impeçam de assassinar uma formiga, um homem, um deus.
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