domingo, 31 de janeiro de 2010

Uma única vez

  • Uma única vez


    O que poderia ter sido e não foi é a causa de quase todos os nossos tormentos

    Sempre estranhei o fato de as pessoas dizerem que quem costuma ler muito está fugindo da vida. Acredito que seja exatamente o contrário: é quando lemos que encontramos o centro de nossa existência, deixando de lado muitas distrações que convencionamos chamar de fatos importantes. Um bom livro nos envolve de tal maneira que podemos dispensar quase tudo. Absorto numa história instigante ou numa reflexão mais densa, esqueço do mundo. A única paisagem que vejo é a que encontro ao folhear as páginas em busca de novos amigos, personagens que me acompanharão pelo resto dos meus dias.

    Vez que outra isso se torna tão intenso que é quase impossível não dividi-lo com os outros. Vou fazer isso agora. Terminei de ler o magnífico romance O Mundo Pós-aniversário, da americana Lionel Schriver, escritora que já havia me impressionado muito com o perturbador Precisamos Falar Sobre o Kevin. Se me fizessem a clássica e batida pergunta sobre quais livros eu levaria para uma ilha deserta, tenho certeza de que os dois estariam na lista. Fato é que não se pode passar incólume pelo texto dessa grande analista do comportamento humano.

    Depois de quatro dias de leitura quase ininterrupta, muitas percepções que eu tinha sofreram uma mudança radical. É isso: um bom livro muda a vida da gente. Aqui temos a história de Irina, ilustradora de livros infantis que, num determinado momento, se sente impelida a beijar um amigo de seu marido. Só que esse gesto quase banal pode ter repercussões imprevisíveis. E é essa questão que a autora trabalha com maestria inigualável. Um ato aparentemente insignificante alterando o rumo inteiro de nossa existência.

    O problema é que nunca vamos saber disso, porque nada se bifurca, não podemos viver duas vidas paralelas. Tudo acontece uma única vez. Só existe o concreto, o que celebramos meio distraidamente nas dobras do dia. Mas como gostaríamos de espiar o caminho que não foi escolhido!

    O que poderia ter sido – causa de tantas angústias que nos torturam anos a fio, em pensamentos reiterados sobre a não escolha. Lionel mostra esse desdobramento. Para concluir que não existe o melhor, não existe o mais correto. Cada um faz o que pode, o que sua estrutura emocional permite quando as coisas acontecem. Se toda decisão implica numa renúncia, também é verdade que sempre elegemos o que nos parece mais plausível à luz da consciência do momento.

    Uma pequena vitória agora pode se revelar uma derrota avassaladora mais adiante. Uma perda também pode ser sinônimo de libertação. Não temos como prever os significados que só o tempo trará. Cabe-nos a aceitação. E a coragem de celebrar uma rotina que pode ser sagrada, pois é dentro dela que desenhamos o nosso mundo.

    Tendemos a ser pequenos, previsíveis, resvalando quase sempre para o ordinário. A grandeza talvez se esconda exatamente aí, na capacidade de transformar o banal em algo grandioso. Em aprender a viver o que é nosso.

    “Pode-se passar um tempo terrivelmente longo esperando a chegada daquilo que se teve desde sempre, como quem tamborila os dedos à espera de uma entrega, enquanto o embrulho aguarda pacientemente fechado do lado de fora da porta.”

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