Estamos vivendo em plena luz do dia, com o sol ardendo em nossos olhos. Eu prefiro manter alguns pontos obscuros, áreas ignoradas, uma curiosidade intocada. Preservar um sentimento, um objeto, uma relação, pode ser uma garantia de que não estamos interessados em invadir, em desarrumar as prateleiras em busca de revelações contundentes, abissais.
Uma frase que costumamos ouvir: “ele não me engana mais, eu o conheço como a palma da minha mão”. Divertido, não? Como se a alguém fosse dado o poder e a capacidade de desvendar quem é o outro. É melhor ser um Lego desmontável ou uma caixa de Pandora, que ninguém sabe o que sairá de dentro? Eu me distraio mais acionando a imaginação do que tendo na mão uma chave que abre todos os compartimentos. Até porque, quem de nós não guarda algum segredo, alguma inofensiva tara, dessas que não prejudicam ninguém? Deixar as portas escancaradas é tornar-se vulnerável, é dar de presente o nosso código ultra-secreto.
Traduzir sim, mas bem mais para si mesmo do que para os outros, que trabalho não há de nos faltar. Que a lanterna incida sobre nós, como um farol que perscruta um oceano sem fim. Como poderemos saber as razões que movem o comportamento alheio? Melhor mesmo é contentar-se com algumas suposições, não com o bater definitivo do martelo.
É difícil colocar um freio na nossa curiosidade. O enredo que ainda não conhecemos sempre nos parece mais original. Não nos damos conta de que, muitas vezes, suspeitar de algo é mais sedutor do que ter certezas. Porque assim deixamos que os devaneios cumpram o seu papel – o de alargar o estreito campo onde se desenvolvem as percepções mais corriqueiras. Que geram a ordem, ninguém duvida, mas que também são responsáveis pela apatia que se instaura em tantos relacionamentos.
“Toda lucidez pede penumbra”, disse o escritor e crítico Daniel Piza. Ter a capacidade de ver muito ou de ver tudo pode se transformar numa espécie de neurose, de compulsão. Prefiro continuar me aproximando devagar, tocando somente com a ponta dos dedos. É mais ou menos isso que as crianças costumam fazer: ficam paradas, observando, antes de dar o primeiro passo.
Enquanto escrevo, a claridade dessa tarde de primavera cede lugar para a noite que se aproxima solertemente. Não quero acender todas as luzes. Habito essa desejada escuridão, depondo as armas. A pressa, o frenesi, ainda latejam depois de tantos compromissos. Descanso na sombra, como um náufrago que encontrou uma boia em alto mar.
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