TRAUMA
Quem nunca teve um trauma na vida ou não passou por situações de conflito tende a se tornar imaturo e com poucas chances de desenvolver um senso mínimo de realidade. Psicologia básica, mas é bom pensar sobre isso na hora de analisar os efeitos que essa ausência de tempestades tem sobre as pessoas. O exemplo mais contundente que posso dar é o de um amigo que conheci na época em que cursava Filosofia. Criatura dada a generosidades incalculáveis, era totalmente incapaz de fazer uma avaliação correta do que estava acontecendo debaixo do seu nariz. Aprontavam horrores com ele e nada. Continuava vendo tudo e todos com a confortável máscara da bondade. Comovente, se você tem vocação para masoquista ou sente prazer em ser ludibriado. Não era o caso. Via-se o quanto sofria, mas não tinha nenhum arsenal interno que pudesse acessar quando precisava de ajuda. Não era uma palavra que raramente usava. Nem os inúmeros psiquiatras que consultou davam conta do caso.Na medida em que o conheci mais intimamente, descobri que fora protegido desde criança de toda espécie de perigo. E, pior, muito pior, sempre teve um séquito de empregados para fazer tudo por ele. Na verdade, ainda é assim. Nunca precisou solucionar problemas práticos, nem se preocupar com a própria sobrevivência. Uma polpuda mesada do pai sempre lhe garantiu ter alguém por perto para resolver qualquer situação de desconforto ou necessidade. Desde trocar o pneu do carro até comprar uma casa na praia. Faltou trauma, com certeza. Hoje, à parte ser um homem de grande cultura e um amigo de fidelidade canina, parece que vive em outro planeta. E, claro, sempre acaba se ligando a mulheres oportunistas, em termos afetivos e financeiros. E quanto mais decepções sofre, mais é incapaz de avaliar o que está acontecendo. Cegueira total. Temo o dia em que venha a ser vítima de alguma agressão física e acabe encontrando as justificativas mais absurdas para o ato.
Estou fazendo a apologia do sofrimento? Acho que não, mas tenho a convicção de que algumas frustrações são fundamentais para criarmos mecanismos que nos protejam. Se a vida não é para amadores, é bom aprender a usar certas armas, se necessário. Meu desvalido amigo preenche as horas se lamentando, sem ter a menor ideia do que se passa e repetindo às raias da demência o mesmo comportamento. Todos são bons, todos querem o melhor para ele. Parece um Cândido moderno, o famoso personagem de Voltaire que acreditava viver no mais perfeito dos mundos, mesmo quando tudo estava desmoronando.
Uma boa receita continua sendo o choque, a perda da inocência. Não dá para fazer de conta que nosso planeta é habitado por anjinhos cor de rosa. Somos uma raça fascinada pelo poder e que não está muito preocupada em fazer ponderações éticas na hora de conseguir o que deseja. Não, isso aqui não é o inferno, mas não custa aprender algumas técnicas de sobrevivência. Por exemplo, substituir a ingenuidade pela lucidez. Para sofrer menos, lá no final. A história mostra que grandes seres humanos passaram por inúmeras dificuldades ao longo de sua existência. Sobreviveram a tudo, deixando um patrimônio de conhecimento e sabedoria.
Ser privado de algumas coisas é o melhor remédio para chegar com saúde física e mental à idade adulta.
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