terça-feira, 20 de outubro de 2009

TRAUMA

TRAUMA

Quem nunca teve um trauma na vida ou não passou por situações de conflito tende a se tornar imaturo e com poucas chances de desenvolver um senso mínimo de realidade. Psicologia básica, mas é bom pensar sobre isso na hora de analisar os efeitos que essa ausência de tempestades tem sobre as pessoas. O exemplo mais contundente que posso dar é o de um amigo que conheci na época em que cursava Filosofia. Criatura dada a generosidades incalculáveis, era totalmente incapaz de fazer uma avaliação correta do que estava acontecendo debaixo do seu nariz. Aprontavam horrores com ele e nada. Continuava vendo tudo e todos com a confortável máscara da bondade. Comovente, se você tem vocação para masoquista ou sente prazer em ser ludibriado. Não era o caso. Via-se o quanto sofria, mas não tinha nenhum arsenal interno que pudesse acessar quando precisava de ajuda. Não era uma palavra que raramente usava. Nem os inúmeros psiquiatras que consultou davam conta do caso.

Na medida em que o conheci mais intimamente, descobri que fora protegido desde criança de toda espécie de perigo. E, pior, muito pior, sempre teve um séquito de empregados para fazer tudo por ele. Na verdade, ainda é assim. Nunca precisou solucionar problemas práticos, nem se preocupar com a própria sobrevivência. Uma polpuda mesada do pai sempre lhe garantiu ter alguém por perto para resolver qualquer situação de desconforto ou necessidade. Desde trocar o pneu do carro até comprar uma casa na praia. Faltou trauma, com certeza. Hoje, à parte ser um homem de grande cultura e um amigo de fidelidade canina, parece que vive em outro planeta. E, claro, sempre acaba se ligando a mulheres oportunistas, em termos afetivos e financeiros. E quanto mais decepções sofre, mais é incapaz de avaliar o que está acontecendo. Cegueira total. Temo o dia em que venha a ser vítima de alguma agressão física e acabe encontrando as justificativas mais absurdas para o ato.

Estou fazendo a apologia do sofrimento? Acho que não, mas tenho a convicção de que algumas frustrações são fundamentais para criarmos mecanismos que nos protejam. Se a vida não é para amadores, é bom aprender a usar certas armas, se necessário. Meu desvalido amigo preenche as horas se lamentando, sem ter a menor ideia do que se passa e repetindo às raias da demência o mesmo comportamento. Todos são bons, todos querem o melhor para ele. Parece um Cândido moderno, o famoso personagem de Voltaire que acreditava viver no mais perfeito dos mundos, mesmo quando tudo estava desmoronando.

Uma boa receita continua sendo o choque, a perda da inocência. Não dá para fazer de conta que nosso planeta é habitado por anjinhos cor de rosa. Somos uma raça fascinada pelo poder e que não está muito preocupada em fazer ponderações éticas na hora de conseguir o que deseja. Não, isso aqui não é o inferno, mas não custa aprender algumas técnicas de sobrevivência. Por exemplo, substituir a ingenuidade pela lucidez. Para sofrer menos, lá no final. A história mostra que grandes seres humanos passaram por inúmeras dificuldades ao longo de sua existência. Sobreviveram a tudo, deixando um patrimônio de conhecimento e sabedoria.

Ser privado de algumas coisas é o melhor remédio para chegar com saúde física e mental à idade adulta.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

ALGUÉM FAZ MELHOR

ALGUÉM FAZ MELHOR

Meu vizinho fabrica móveis. Eu não consigo serrar uma tábua. Beatriz pinta quadros magníficos. Eu nunca peguei um pincel na mão. Conheço um garoto de seis anos que é um ás no computador. Eu sei o básico do básico. E quantos escrevem muito melhor do que eu. Faço algumas coisas bem, outras mais ou menos e sobre a maioria não tenho a menor ideia. Mas tem muita gente que esbanja talento por aí. Então, adeus arrogância, adeus pretensão de achar que sem a minha presença o mundo se tornaria um caos. Cada um se vira como pode, mas não custa nada dar uma olhada para o lado e ver o que acontece um pouco além da cerca do nosso gramado.

Um exemplo clássico é quando somos demitidos de um emprego. Nossa vingança pessoal é pensar: tudo bem, eu quero ver como eles vão se virar sem mim... Se esse negócio anda é porque eu faço isso, mais isso e mais aquilo. Uma semana depois você volta ao local de trabalho e leva um susto. Não só as coisas continuam funcionando como, às vezes, até melhor do que antes. Portanto, não nos sintamos como deuses perdidos em meio a uma multidão de ignorantes apenas porque aprendemos alguns truques básicos de sobrevivência.

Até pouco tempo atrás eu pensava que a humildade era um atributo dos fracos. Pessoas normais, pessoas que queriam vencer, tinham que esquecer isso. Mas estou virando a bússola – meu norte agora é outro. O ponto principal me parece ser esse: posso ser muito bom no que faço, mas nada me assegura que as aptidões que escolhi ou consegui desenvolver são superiores às de quem, por exemplo, resolveu se especializar em eletricidade. Ou em engenharia espacial, gastronomia, sei lá. Não daria muito certo se todos ficassem só escrevendo. Existe uma engrenagem complexa que costumamos ignorar, sem a qual estaríamos parados, perdidos, olhando o cortejo passar.

Ao sairmos da torre do nosso castelo particular conseguimos perceber que, mesmo quando algo nos parece imperfeito, quando um trabalho está mal feito, provavelmente foi o máximo que aquela pessoa pôde dar naquele momento. É bom lembrar disso antes de colocar o dedo em riste para apontar os defeitos alheios. Vale para a comida que sua mãe faz, para o último filme que você viu ou aquela crítica da qual discordou. Quando solicitam a nossa opinião, crescemos uns dez centímetros e dizemos: “Veja bem, se fosse comigo...”. Quem nos garante que também não iríamos desapontar alguém? Somos tão propensos a ver somente a nós mesmos que fica difícil compreender em escala diferente da que nos ensinaram.

O melhor dos outros pode provocar em mim o desejo de imitação positiva. É o fiat lux, o “meu Deus, por que é que eu não pensei nisso antes?” Para que tanta severidade? Que importância tem tudo isso diante da morte, só para lembrar o óbvio? Reconhecer o que está acontecendo de bom ao nosso lado é uma maneira de forçar nossa consciência a perceber outros padrões, outras alternativas.

Somos apenas um ponto de referência, não a matriz de onde devem sair todas as cópias.