domingo, 13 de dezembro de 2009

35 E MEIO

35 E MEIO

Tenho uma amiga que passa por dificuldades homéricas toda vez que vai comprar um sapato. Ela calça 35 e meio. É quase impossível sentir-se confortável usando 35 ou 36. Ou fica muito folgado ou aperta demais. Resultado: ela vai se adaptando como pode a essa peculiaridade anatômica. Deixa de lado a vaidade em troca do necessário conforto para conseguir andar sem formar bolhas nos pés ou tropeçar nas próprias pernas.

Você não acha que algumas pessoas passam a vida calçando 35 e meio? São tão rígidas com elas mesmas e com os outros que não admitem a possibilidade de fazer pequenos ajustes para conviver melhor com seus semelhantes. A severidade é tanta que nem sonham em elaborar um outro roteiro para suas relações. Difícil conviver com elas! Quase nunca cedem e acabam fazendo com que nós também nos restrinjamos a essa perspectiva de ver tudo sob a ótica de meros centímetros. Ou milímetros, às vezes. Obviamente perdem o melhor da festa, porque quem não se permite relaxar acaba vivendo dentro de uma camisa de força emocional.

Raramente essas criaturas improvisam algo. A ousadia não faz parte de seus planos. Repetição é a palavra mágica, porque com essa forma de agir conseguem acreditar na maior de suas fantasias: a de que controlam tudo. É no inusitado que mora o perigo, acreditam. Para que arriscar algo, se está bom assim, tudo morno, previsível, confortável? Não importa se há ou não testemunhas para seus atos. A cobrança maior é em relação a elas mesmas. Devem sofrer horrores, sempre se penitenciando por uma palavra dita num contexto errado, por cinco minutos que chegaram atrasadas a um encontro, por aquele doce que não deveriam ter comido.

Sinto medo de me aproximar de quem professa a religião da inflexibilidade. Dos que não se permitem amanhecer numa cama desconhecida, experimentar novos sabores, apanhar chuva depois do trabalho, dizer bobagens. Acaba-se perdendo um dos mais preciosos bens, que é a capacidade de aceitar o diferente, a liberdade de mudar de opinião, deixando que tudo se transforme em algo cinza, sem surpresas. Mas seguro, sempre seguro. É só por esse caminho que sabem andar.

Como costumam ser bem ajustadas aos padrões que convencionamos chamar de normais, parece que sempre está tudo bem com elas. Mas não tenho dúvidas de que se torturam dia e noite, de que não aceitam nunca a ideia da falibilidade. Ou eles fazem e têm o melhor, ou nada. Só que tudo o que vibra, vive e pulsa acontece no campo da desordem, da especulação e da possibilidade. Quem não arrisca está condenado à perfeição e não há nada mais cansativo do que ela. Vale lembrar que só na morte não há mais risco nem erro.

Cobrar menos de si mesmo e dos outros, sabendo ajustar-se às circunstâncias – eis aí um bom modo de se levar a vida. Quando, por exemplo, você for pendurar um quadro na parede, erre acidentalmente o ponto marcado. E não o cubra com massa corrida ou tinta. Deixe-o lá como um aviso para lhe mostrar que é importante se divertir com sua própria falta de habilidade para algumas coisas. É disso que nasce o relaxamento e a tentativa feliz de usar sapatos de outra numeração, além do 35 e meio.

Saber adaptar-se, eis o segredo.